Os Estados Unidos de Liv Tyler
Em junho de 2002 eu vivia em Nova Iorque e trabalhava no restaurante Pão, na esquina da Greenwich com a Spring. Portugal ia defrontar os Estados Unidos e o meu amigo Bruno de Almeida, a quem eu servia café português todos os dias, estava tão confiante na vitória que disse a um americano para apostar 200 dólares em Portugal – caso o outro perdesse a aposta ele mesmo lhe devolveria o dinheiro.
Na primeira parte estávamos a perder 3 a 0 e, num dos mais antigos pubs de Nova Iorque, The Ear Inn, onde em tempos beberam marinheiros portugueses, vi-me rodeado de americanos eufóricos que até lançamentos laterais aplaudiam. Outro amigo, também ele português e empregado de mesa, mandou o patrão americano calar-se várias vezes. O patrão, recém divorciado de uma portuguesa, tinha um certo amargor com o nosso país. Perdemos 3-2 e aquele mundial foi uma desgraça. Bruno largou 200 dólares.
Ser derrotado pelos americanos daquela maneira, estando eu no meio deles, deveria ser motivo de transtorno para um rapaz de 25 anos que gostava de futebol. Mas, importa dizer, umas horas antes eu fora inoculado contra a tristeza.
Entre o fim do turno no restaurante e o jogo, que começava às cinco da manhã, atravessei a rua e entrei na discoteca Don Hill´s. Cruzei a nuvem de erva fumada pelos seguranças negros do tamanho de armários e suponho que tenha bebido o suficiente para que, com música e luzes intermitentes, tudo me parecesse formidável.
De repente, ao som de uma música pirosa, mas altamente dançável de George Michael – gostava de ter outra banda sonora, mas esta é a verdade -, lá estava ela, diante de mim, dançando inteiramente, a mesma boca que eu contemplara em “Beleza Roubada”, os cabelos desgrenhados diante da cara, um swing e um sorriso.Nessa noite regressei a casa com amigos, de manhã, depois da derrota de Portugal. No entanto, sentado no metro, a caminho de casa, só podia sorrir. De que vale um jogo de futebol diante de um interlúdio de dança, no escurinho da pista, com uma miúda que dança melhor ao vivo do que nos filmes?
Santos populares cariocas
Na noite de sábado, antes do jogo, um grupo de portugueses (alguns deles responsáveis pela existência de uma barraca do Benfica na praia de Ipanema), organizaram uma noite de santos num restaurante baiano nas margens da Lagoa. Em vez de acarajé, cheirava a sardinhas assadas e Dora cantava “Não sejas mau para mim” nas colunas de som. O fumo das sardinhas e a banda sonora não batiam com o cenário do Morro Dois irmãos. Fazia um frio atípico. Era uma combinação inusitada: santos populares, temperaturas baixas, Rio de Janeiro, dezenas de portugueses longe de casa a fazer trenzinhos quando tocava o “Apita o comboio”, e uma ventania de filme de suspense que fazia reverberar as palmeiras. Toda a gente divertida menos eu (culpa minha), que julgava ver naquele cenário um erro no tempo e no espaço, um mau prenúncio, uma falha na programação do universo. Não se trata de superstição, mas de intuição. As alegrias desta Copa, já se viu, não estão reservadas para quem come sardinhas assadas no inverno carioca.
Crónica do jogo no Baixo Gávea
É uma esquina conhecida no Rio. Há portugueses que gostam de compará-la com o Bairro Alto (versão miniatura). Tem uns quantos restaurantes míticos (com donos portugueses) que servem pratos como picanha ou bacalhau, um punhado de botecos e dois restaurantes japoneses. Funciona como ponto noturno para se beber na rua. Há mesas nas calçadas e vendedores ambulantes com enormes caixas de esferovite onde armazenam cervejas em gelo. É um clássico. Aos domingos, misturam-se ali famílias, grupos de amigos, hipsters, boémios de ressaca e miúdas giras. Há sempre tambores ou algum tipo de batucada. É um bom sítio para se ver um jogo.
Os amigos estavam atrasados e o jogo começara. Estava sozinho, distraído, nervosinho. Uma sósia de Courtney Love (até nas borbulhas eram parecidas), que torcia pelos Estados Unidos, pedia um caldinho de feijão; um palerma com uma camisola do Ronaldo, lá fora, continuava a tentar seduzir uma miúda e o jogo já tinha começado – que género de adepto perde o inicio da partida? Os meus amigos, por exemplo. Dois portugueses que vivem em Madrid e uma síria que vive no Dubai. Chegaram equipados com as cores da seleção e os nervos acalmaram. Mesmo assim, passei o jogo irritadiço, como se quisesse espicaçar o cavalo para tentar que ele corresse. Ver os jogos da própria seleção implica mais sofrimento que deleite. Desfruto mais a ver as outras seleções. Talvez isso sirva de algum consolo para o resto da Copa. Não me parece.
Tudo piorou quando os Estados Unidos marcaram o segundo golo e a mesa da frente, com brasileiros, celebrou como se Neymar fechasse a final no Maracanã com um golo de bicicleta. O rancor dos derrotados subiu por mim como se fosse espuma azeda de chope estragado. Esta coisa da Copa do mundo traz o pior de nós – e o melhor também, espero, porque pouco depois o meu amigo continuava a acreditar, imune à minha rezinguice, a dizer-me que íamos marcar, até que estávamos todos a gritar o empate como se o Ronaldo tivesse fechado a final no Maracanã com o golo de calcanhar.
“Estamos vivos”, disse-me. E, por uns instantes, eu acreditei que sim.
Fado do segundo golo
Foi um golo bonito, nos últimos momentos do jogo, mas um golo que dava apenas um empate estéril. Foi o golo que mais gritei nesta Copa, aquele que me deu mais esperança. O cruzamento, o tiro de cabeça, e a loucura – provocada pela euforia momentânea – de pensar que, no minuto que faltava, ainda era possível marcar outro. A glória do adepto, já se sabe, é sempre breve.