Dia de jogo
São manhãs diferentes, como aquelas em que íamos de férias – a promessa nas malas feitas e a emoção da estrada – ou quando, ao acordar, nos lembrávamos que tínhamos um encontro amoroso marcado para o final da tarde – o primeiro copo desenrolando a língua, o sol ao fundo, o rio e o céu rosado anunciando calor. Enfim, falo de algo por que vale a pena esperar.
Por vezes, penso como posso importar-me tanto com um jogo sobre o qual não tenho qualquer influência, como podem uma prestação e um desfecho, fora do meu controlo, influenciar o meu humor e o meu orgulho, ainda que por breves horas. Não vale a pena pensar muito, os dias de jogo não costumam providenciar lucidez ou lógica, são infantis e inquietos.
(Vou ver o jogo com os EUA ao lado de um amigo antigo, de visita ao Rio, com quem não estou há muito tempo. Este encontro tem por isso o bónus da cumplicidade, das piadas rápidas e das referências a jogos de outras Copas. Talvez façamos um brinde à canhota diabólica de Fernando Chalana no Europeu de 1984).
Por muito que grite diante da TV, nada posso definir no jogo, também sei que os jogadores nada me devem e que nada lhes cobro. Após vê-los no embate com a Alemanha, perdidos como se depois de um acidente de carro, suspeitei que pudessem estar numa dessas fases de “chegar e picar o ponto”, demasiado dormentes e desinteressados, pensando nas férias.
Hugh Laurie, ator que interpreta o Dr House, contou numa entrevista que percebeu estar deprimido quando, numa corrida de carros, a alta velocidade, o seu automóvel passou intacto por entre os destroços e ele não sentiu qualquer emoção.
Seria uma pena que, ao contrário do que acontece com os jogadores do Chile, Uruguai ou Costa Rica, os portugueses, tal com Laurie com o pé no acelerador enquanto sobrevivia aos despistes, não fossem capazes de perceber o momento especial e único em que estão metidos, o sonho mais sonho dos miúdos, a emoção de jogar numa Copa do Mundo – nesta Copa do Mundo.
Portugal dos pequeninos
Já aqui escrevi que ver uma Copa do Mundo fora do nosso país pode ser uma experiência solitária. Mesmo que nos demonstrem empatia na derrota, há sempre alguém que nos aponta aquilo que já sabemos (perdemos). Julgo que, pelo menos no Rio, a cidade mais portuguesa do Brasil, há uma simpatia generalizada pela seleção portuguesa.
A história seguinte não é sobre a pirraça do adversário, mas mostra bem a solidão do adepto emigrante na hora de vestir a camisola. Na sua coluna do Globo, Ancelmo Góis escreveu:
“Uma aluna portuguesa de 11 anos, do 6º ano do Colégio Santo Agostinho, no Leblon, foi proibida, tadinha, de usar na escola quinta, dia da estreia do Brasil na Copa, a camisa da seleção de Portugal. A menininha tentou argumentar. Mas a coordenadora insistiu em que o colégio tinha avisado a todos para ir com a camisa da seleção brasileira. Parece um exagero. E é.”
E essa Copa?
No outro dia, um correspondente sueco, há doze anos no Brasil, disse-me que se tinha mudado para aqui porque não acontecia nada na Suécia e porque no Rio ele tinha sempre histórias para contar. Talvez essa riqueza narrativa e a imprevisibilidade do quotidiano se tenham também transferido para a Copa dentro das quatro linhas. Depois de tantas surpresas nos resultados, reviravoltas, goleadas e a sensação de que tudo é possível, a frase que mais tenho ouvido – repleta de felicidade e espanto – é: “E essa Copa?”
Sobre a procrastinação durante a Copa
É assim desde pequeno: começa o campeonato do mundo e tudo o resto é enlaçado por uma preguiça e um desinteresse modorrentos, a vida passa a organizar-se em função dos jogos do dia, e há um murmurinho de bola de manhã à noite, o cheiro da tinta das páginas desportivas ao pequeno-almoço, a absoluta necessidade de ver o resumo dos melhores momentos de um jogo a que acabámos de assistir.
O sofá e o comando da TV ganham uma primazia ainda maior na hierarquia dos objetos da casa, o cão vai à rua entre uma partida e outra, o lanche acontece no intervalo do jogo das quatro da tarde, é melhor encomendar o jantar porque tanto futebol num só dia, embora não me retire o apetite, leva-me a vontade de estar diante de um fogão.
É assim desde o colégio e a faculdade, quando o período de preparação e de estudo para os exames coincidia com a Copa e os planos de trabalho adaptavam-se ao calendário dos jogos. Claro que, inevitavelmente, as boas intenções do estudante implodiam perante o espírito “campeonato do mundo”. Para agravar, o torneio coincidia sempre com o princípio do verão no hemisfério norte – as noites cálidas e os amigos na rua, a cerveja e o marisco, a folia dos santos populares misturada com a euforia dos jogos, o malemolência salgada do pós-praia, o corpo lançado no sofá enquanto um jogo passava na televisão.
Talvez a Copa seja uma licença dos dias normais, um mês inteiro, de quatro em quatro anos, em que a preguiça e a procrastinação encontram o melhor pretexto para se revelarem inteiramente e sem vergonha.
Tal como na faculdade deixei alguns exames para a segunda época por causa das promessas do verão e do hipnotismo da Copa, ando por estes dias mais desinteressado do livro que deveria escrever e mais entregue a tudo o que tem a ver com o Campeonato do Mundo. Sei que é uma desculpa para adiar a sina de escrever o livro. Mas hoje – e talvez isto seja paz de espírito – em vez de sentir culpa ao trocar o dever pela inconsequência futebolística, aceito que preciso tanto disto como uma senhora nervosa precisa dos seus comprimidos para amaciar as arestas do mundo.
Atrás da bola
O artista plástico brasileiro Vik Muniz, autor da longa documental “Lixo extraordinário”, pegou na bola, como objeto universal, e produziu um filme sobre o esférico. Nelson Rodrigues escreveu que a bola “é um reles, um ínfimo, um ridículo detalhe. O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão”.
Usando a relação de várias pessoas com bola em diferentes lugares do planeta, ao mesmo tempo que revela o seu processo criativo na execução de uma grande obra de arte, Muniz acaba por falar do mesmo que Rodrigues: o futebol muito além de uma bola.
Era uma vez na América
Não se fala de outra coisa: a supremacia das seleções americanas sobre as europeias. Os comentadores de TV generalista brasileira regozijam com os insucessos europeus e há um sentimento continental, de oposição ao velho mundo, que seria impossível de existir hoje na Europa deprimida e rabugenta. Este sentimento coletivo “americano” é mais alegria do que rancor, mais afirmação do que destruição do outro – é a celebração das nações do continente e do pundonor dos seus atletas, que, segundo Tostão, campeão do mundo pelo Brasil e cronista de eleição, “possuem mais gana e orgulho de atuar pelas suas seleções do que os europeus”.Vale a pena ler aqui.