La sangre caliente
A primeira vez que ouvi a expressão “Eles chegaram com sangue nos olhos”, foi após o jogo em que a Holanda esmagou a Espanha (5-1). Não foi difícil perceber o que significava. No entanto, a raça, a vontade e o espírito de superação expressados nessa imagem dramática – o olhos raiados de sangue – pode agora, ao final de uma semana de torneio, ser utilizada também para a maioria das seleções sul americanas. Talvez seja um mero acaso que uma seleção europeia nunca tenha sido campeã do mundo neste continente, mas a verdade é que há um sentimento de propriedade e dever entre as equipas sul americanas, que quiçá se deva ao chamamento da terra, do orgulho nacional e da proximidade e entusiasmo dos seus adeptos – no dia de jogo no Maracanã, os chilenos no Rio eram muito mais (e muito mais esperançosos) do que os espanhóis.
Não falo apenas da emoção bruta, do choro no hino, no tesão desgovernado que leva um jogador a morder as canelas do adversário. É antes um estado de entrega e concentração que não encontrei, por exemplo, no desnorte de Portugal ou na molenguice anímica da Espanha, uma equipa que, como manda a ordem natural das coisas, se cansou de querer ganhar.
Já se viu que os alemães, mais sólidos emocionalmente do que um pugilista em dia de luta pelo cinturão, não precisam do apelo da bandeira ou do sangue. Mas num torneio único, com tantas surpresas e apenas sete jogos para se conseguir o título, não seria de estranhar que uma seleção que acredite no impossível seja mais feliz do que aquela que se contenta com o previsível.
Vale a pena ver de novo
O primeiro golo da Austrália, contra a Holanda, marcado por Tim Cahil, é um daqueles golos que, se vamos no meio da rua e temos a sorte de nos cruzarmos com a televisão de um café, nos leva a parar e a partilhar com desconhecidos o brilhantismo do momento, como se fossemos todos testemunhas privilegiados de um fenómeno singular, que, além de incrédulos, nos deixa mais próximos e gratos e felizes a cada repetição em câmara lenta.
O inferno são os outros
Há uma desvantagem de se ver um mundial longe de casa: estamos mais sozinhos na vitória e, particularmente, na derrota. Logo após o jogo com a Alemanha, o porteiro de um prédio no Centro, que me vira entrar de manhã, para o escritório, como a camisola de Portugal, perguntou, com um sorriso sacaninha, quando me viu sair com uma t-shirt branca: “Então, tirou a camisa?” Senti-me desprevenido, estranhamente culpado e até estúpido. Respondi com se tivesse de justificar-me: “Tenho uma reunião, não podia ir com a camisa do Ronaldo”. Tenho a certeza que, assim que virei as costas, ele largou um sorriso impiedoso.
Felizmente, os cariocas mostraram mais solidariedade do que gosto na nossa desgraça. No entanto – e os homens sabem do que falo -, voltei a experimentar o desconforto daquelas segundas-feiras de escola, quando a nossa equipa acabara de perder o jogo de domingo e os coleguinhas dos outros clubes nos acossavam com piadas, regozijando com a dor alheia.
No dia em que a Espanha foi derrotada pela Holanda, encontrei uma amiga espanhola e, por cortesia, compaixão e temendo que nos fosse acontecer o mesmo com a Alemanha, fui incapaz de fazer uma piada. Não me parece, no entanto, que o karma funcione em época de Copa do Mundo, especialmente se tiver em conta as vezes que me vieram falar do jogo com a Alemanha como se a derrota em campo fosse a minha derrota pessoal e o Ronaldo fosse o meu irmão desgraçado que estava a pedi-las há muito tempo.
A tarde passada um porteiro salvou-me a vida
O porteiro é uma instituição carioca. Muitos prédios têm porteiro 24 horas e, além de saberem tudo o que se passa no edifício e no bairro, eles são muitas vezes excelentes interlocutores quando se trata de futebol. O conhecimento futebolístico de Isaías, o porteiro da noite do meu prédio, tem-me servido na apreciação deste mundial e abriu portas para que falássemos de muitas outras coisas.
Um desses porteiros cariocas salvou 50 chilenos que não conseguiram bilhetes de ultima hora para o jogo com a Espanha. Nas imediações do Maracanã, virou a sua pequena televisão para a rua e, por entre as grades – típicas em redor dos prédios no Rio – esses chilenos puderam ver a vitória da sua seleção. Quando um dos moradores se queixou por causa do barulho, o porteiro, sensato e generoso, evitou males maiores: “Não dá, se eu tirar eles vão ficar fazendo bagunça aqui do mesmo jeito.”
Espera aí que eu já venho
Os motoristas de ônibus não são as figuras mais amadas no Rio. Letalmente acelerados, costumam passar vermelhos como se estivessem num jogo de computador. Por isso estranhei o dia em que, dentro do ônibus, vi o sinal abrir e o veículo ficou quieto. Olhei para diante e vi a razão: o motorista paquerava a única outra passageira enquanto o cobrador dormia. Hoje, habituado ao rocambolesco universo do ônibus cariocas, não me espantei ao ler a notícia do Globo que dizia que um motorista parou o autocarro na Praça da Bandeira e, antes de sair para um boteco para ver o jogo do Brasil, avisou os passageiros: “Ó, vou encostar no primeiro lugar que tiver TV. É melhor vocês descerem logo”.
BD
O jornal Estado de São Paulo oferece, na edição online, almanaques de banda desenhada de todas as copas ganhas pelo Brasil. Podem começar pela primeira, a de 58, quando Pelé tinha apenas 17 anos. Para ver aqui.