É uma data decisiva para que eu seja quem sou: 25 de abril de 1974. Posso mesmo dizer que se trata de um dos dias mais importantes da minha vida, embora, para que sejamos precisos, eu só tenha nascido dois anos, dois meses e duas semanas após a madrugada de que vos falo e que me levou a escrever esta carta. Pode parecer-vos estranho que algo que aconteceu antes da minha concepção tenha alterado a minha vida tão completamente, tal como vos parecerá bizarro que alguém decida escrever uma carta aos filhos que ainda não teve. Mas, por esta altura, já devem saber que, apesar de terem um pai com alguns maneirismos mentais estranhos, ele se preocupa com o vosso futuro, e que é por isso que vos envia cartas do passado.
Fiquem a saber que, no início de tudo, a minha avó tinha uma televisão a preto e branco por onde avançava um funeral; a minha mãe chorava por causa do defunto no ecrã: um primeiro-ministro, de sorriso honesto e esperançoso, que morrera num desastre de avião. Os homens da casa diziam que os comunistas o tinham matado. Os tais comunistas – pelo que conseguia compreender da conversa dos graúdos – tinham sido criados pelo 25 de Abril, tal e qual mortos-vivos no pós apocalipse.
Usando talvez a mesma lógica de pré primária, aos cinco anos, quando descobri que o meu melhor amigo tinha nascido em África, perguntei-lhe com genuíno espanto: “Mas então como é que não és preto?” Marco não era preto e a sua família saíra de Angola, disse-me, por causa do 25 de Abril. O seu avô, professor, escrevia poemas contra os comunistas. Era um homem brincalhão, impecavelmente trajado de três peças, que ainda usava chapéu. Havia nele uma tragédia que só perceberia muitos anos mais tarde, quando encontrei um exemplar do seu livro de poesia e constatei que a amargura que lhe provocavam os comunistas era tão devastadora como a certeza de que a perda, afinal, era muito maior do que aquilo que a família deixara em África – África, para ele, fora assassinada; o seu luto era tão dolente e revoltado que parecia que tinham degolado uma filha na sua presença.
O 25 de Abril não era apenas uma efeméride no calendário, mas sim um folhetim romanesco que se ia desenrolando ao longo dos anos tal e qual uma telenovela ou um filme de aventuras. O 25 de Abril não era só uma madrugada – era um romance de vários tomos e personagens incontáveis, que se passava antes e depois da data em questão. Havia bons e maus, gente que morreria pela pátria e facínoras sem redenção, pais que levavam os filhos para tardes de doutrinação e laranjadas na sede do PCP, e avós reacionários que, sozinhos no cinema, compravam três cadeiras para que o povo, revolucionário e piolhoso, não chegasse perto. Os comunas e os fachos, os brancos colonialistas contra os pretos terroristas, a guerra revelada nas fotos do meu pai, em Luanda, e na perna coxa do meu padrinho – foi atingido por um morteiro, que por sorte não explodiu, mas que lhe partiu o osso em vários lugares, deixando-o num pântano, durante horas, esperando o resgate dos helicópteros.
Com o passar dos anos, percebi que a revolução era mais do que uma ficção na minha cabeça, e que, afortunadamente, tinha posto fim a quase meio século de ditadura, asfixia mental, medo, mesquinhez pacóvia, tortura, jovens lançados pelas janelas da PIDE, celas chamadas de “frigideira” onde os presos políticos eram drenados pelo calor africano. Entendi que, embora de brandos costumes, a nossa revolução mudara, de facto, o país e as pessoas, legando aos portugueses algo que ia mais além daquilo que eu aprendia, sobre o 25 de abril, na escola, nos jornais ou nos documentários na televisão, enfim, a vida que não aparece nos manuais de História, como a derrota insanável na expressão do avô do meu melhor amigo – que jamais voltaria a pisar Angola -, ou a façanha feliz, e aparentemente mundana, de poder escrever o que me apetece sem receio de censura ou castigo, ao contrário do que acontecia antes da revolução, e do que ainda acontece em grande parte do mundo.
Comecei por vos dizer que o 25 de abril foi fundamental para que eu seja aquilo que sou, permitindo que eu crescesse numa democracia, que pudesse estudar, pensar, sair do país. Por isso, estarei para sempre grato. Serviu também para que os portugueses se sentissem menos isolados do mundo e mais seguros do seu potencial. Permitiu prosperidade, massa crítica. E por mais que a esquerda e a direita se digladiem sobre o significado, importância e resultados desta revolução, aquilo que deveras me importa não se encontra no viés contaminado das ideologias.
Quando lerem esta carta, pouco vos interessará que a revolução tenha sido de esquerda e a ditadura de direita. Dificilmente conhecerão a impotência e a mágoa do oficial que me disse, cara a cara, não ter podido trazer consigo os soldados negros, da Guiné para Portugal, após a revolução; ou o abandono que um desses soldados me confessou sentir, na Praça do Rossio, recordando como sobrevivera, durante anos, num campo de trabalho, onde estiveram presos os guineenses que combateram com a farda portuguesa – e onde a maioria foi morta.
Não será fácil, para vocês, entender a euforia e os exageros daqueles tempos, a ingenuidade bem intencionada de uns e o desejo sanguinário de outros. Nem poderão saber tudo o que condensava a palavra “retornado”, ou sequer perceberão como é normal que muitos revolucionários, com o passar do tempo, troquem a utopia pelo enriquecimento fácil. Uma revolução não é um truque de magia, não resolve todas as insuficiências dos homens. Mas pode, pelo menos, discernir os decentes dos pulhas.
Hoje, 40 anos depois do 25 de abril de 1974, só quero mostrar-vos que esse dia foi apenas o início, e que para haver um princípio, em algum momento, houve alguém que se dispôs a abandonar a resignação e a opressão, alguém que quis fazer aquilo que estava certo em vez de fazer aquilo que era mais fácil, acreditando que a coragem de alguns beneficiaria a vida de muitos. E assim foi. E assim espero que seja ainda quando lerem esta carta. E, se assim não for, é porque está na altura de dizer outra vez: “Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto”.