Todas as tardes, no Largo da Carioca, está um homem baixinho e de cabelo pintado, segurando um cartaz – “Vocês merecem o Inferno” – e vociferando raiva para um megafone, acusando os pecadores que cruzam a calçada portuguesa. No mesmo largo há sempre vários homens e mulheres pregando a palavra de deus. O Brasil é um país religioso, espiritual e místico. Felizmente, a maioria dos brasileiros, quando se trata de fé, tem comportamentos menos excêntricos e impositivos do que o pregador do Largo da Carioca. Aliás, a convivência entre diferentes religiões é aqui facilmente verificada na quantidade de católicos, judeus ou protestantes, que um dia está no templo, escutando o sacerdote, e, no dia seguinte, está num terreiro de candomblé ou de umbanda, ouvindo as vozes de escravos e índios incorporados em pais e mães de santo.
Quem se meta num carro a caminho de Paraty pode ver a quantidade de novas igrejas evangélicas na beira da estrada, entaladas entre lojas de pneus e supermercados, muitas vezes com um aspeto pobre, templos improvisados em anexos ou garagens, que dificilmente correspondem ao luxo de outras – como a IURD -, mas que ilustram a sua disseminação pelo Brasil. Segundo o censo de 2010 os evangélicos são 22% da população – cerca de 40 milhões -, prevendo-se que sejam a maioria a partir de 2020.
O grande crescimento dá-se entre “as igrejas da TV”, que dominam várias emissoras, transmitindo programas em que, como num concurso, os fiéis são entrevistados dentro do carro que deus lhes irá oferecer um dia. Mestres da comunicação de massas, das técnicas de propaganda e do marketing, estas “igrejas da TV” são um blockbuster religioso, pregam a prosperidade e a recompensa de deus em forma de casa ou de tablet. E, com ajuda dos últimos anos de bonança na economia brasileira, as suas profecias de fortuna para todos foram mais facilmente cumpridas. Em certas igrejas pode-se pagar o dízimo com cartão de crédito, em prestações.
O meu problema, melhor, a minha desconfiança, tem muito menos a ver com a fé, os rituais ou a estratégia mercantilista dessas igrejas, mas com a crescente presença de pastores e partidos evangélicos na política brasileira – a maioria ligada às “igrejas da TV” -, bem como certos preceitos, regras e ódios por eles professados. Na Câmara Federal, entre as duas últimas eleições, os partidos evangélicos passaram de 46 para 75 deputados – o PT de Dilma Rousseff tem 89 – e prevê-se que esse número cresça 30% na próxima consulta popular, o que daria aos evangélicos 18% dos lugares na câmara. Quanto mais deputados mais capacidade para influenciar a política governativa e de conseguir cargos executivos, o que, de certa maneira, me parece contraditório com o ideal de um estado laico.
O rosto mais conhecido da Frente Parlamentar Evangélica é o pastor Marcos Feliciano, que presidiu a Comissão de Direitos e Minorias da Câmara de Deputados, e que, disparando em todas as direções, diz que Caetano Veloso e o vocalista dos malogrados Mamonas Assassinas fizeram um pacto com o diabo, que “os africanos descendem do ancestral amaldiçoado por Noé”, e que “a podridão dos sentimentos dos homoafetivos levam (sic) ao ódio, ao crime, à rejeição”. Um vídeo na internet mostra Feliciano falando de um fiel desobediente: “Samuel de Souza doou o cartão, mas não doou a senha. Aí não vale. Depois vai pedir o milagre pra Deus, Deus não vai dar, e aí vai falar que Deus é ruim.” Feliciano foi defensor do projeto de lei conhecido popularmente como “cura gay”, que pretendia anular a resolução que impede os psicólogos de participarem em serviços que proponham a cura dos homossexuais. Ou seja, se o projeto de lei fosse aprovado, a homossexualidade podia ser tratada como uma doença.
Pouco me importa a que deus reza Feliciano, mas importa-me que em muitas igrejas evangélicas se diminua o papel da mulher, serva do marido, obediente e em segundo plano, tal como me incomoda a propagação da ignorância e do preconceito, se não mesmo do ódio, com o outro, o diferente, o homossexual, o infiel, o pecador. E importa-me que essa agenda de rancor, de ganância e de regresso ao passado tenha o dinheiro e o poder político para ir cada vez mais adiante. Talvez seja um mal menor, mas a esperança é que os objetivos desses pastores sejam mais prosaicos – ficarem cada vez mais ricos – do que de cruzada ideológica.
Um destes dias fui falar com o homem do cartaz “Vocês merecem o Inferno”. Nesse momento, ele maldizia os paulistas, os gaúchos, os cariocas – e por aí adiante, povoando todo o Brasil de condenados ao fogo eterno. Aproximei-me e disse:
– Posso fazer-lhe uma pergunta?
– O que é que você quer? – replicou, desconfiado e com maus modos.
– Como é que o senhor sabe que todas as pessoas que passam aqui merecem o Inferno se nem as conhece?
– Porque são todos macumbeiros, maconheiros e veados.
– Essa não ia ser a opinião de Jesus Cristo, ele…
– O que é que você quer?
Fiz-lhe, infantilmente, uma careta, e fui-me embora, ciente da impossibilidade de uma conversa, e pensando que me apetecera questioná-lo porque me irritava vê-lo todos os dias jorrando cólera pela matraca, insultando quem passa, julgando quem não conhece, desvirtuando tão inteiramente a mensagem do mesmo Jesus Cristo que evoca para sentir-se do lado da razão e do poder. Saí de lá satisfeito? Ganhei alguma coisa? Ele vai deixar de ser um canhão verbal de ruindade? Podem dizer-me que não vale a pena confrontar um louco e um fanático, mas eu digo o contrário. É exatamente porque a religião foi tantas vezes, ao longo da história, abrigo de loucos e rampa de lançamento de fanáticos, que é preciso não assobiar como quem não quer a coisa, deixando tudo nas mãos de deus ou do diabo.