Até me mudar para o Rio de Janeiro, nunca tinha pensado muito na frase “A vida são dois dias e o carnaval são três”. Não falo da possível inquietação com as conjugações verbais erradas – “a vida são”, “o carnaval são” – nem sequer da evidência de que duramos tão pouco. Falo antes da forma como o carnaval carioca desrespeita alegremente o calendário, tal e qual um folião sem dia para chegar a casa.
Perto do carnaval, o Natal é um escuteiro submisso. É verdade que no final de novembro as lojas já têm duendes nas montras e tocam musiquinhas com sinos, mas o carnaval salta mais fronteiras do que um imigrante ilegal a caminho dos Estados Unidos.
Em novembro, os cordões Boi Tolo e Prata Preta saíram para a rua com o pretexto de inaugurar o pré-carnaval. (Segundo a lenda, o Boi Tolo começou quando foliões atrasados para o Bloco do Boitatá se perderam dos restantes e deambularam, sozinhos e tolinhos, pelas ruas da cidade, dando origem, nos anos seguintes, a um novo bloco.)
Por estes dias (falta 46 para o carnaval), no largo da Carioca, no Centro, um velho empurrava um aparelho de som, num carrinho de mão, que tocava “Mamã eu quero mamar”, e vendia Cds pirata com marchas do tempo em que os senhores usavam sobrecasaca. A TV Globo já apresentou oficialmente a mulata formosa que, todos os anos, requebra as ancas nos separadores da transmissão em direto do sambódromo. Os blocos avançam pela cidade ao fim de semana, as escolas fazem ensaios abertos ao público e a Mocidade Independente de Padre Miguel acabou de anunciar, com direito a página de jornal, que todas as garotas escolhidas para o carro abre-alas, que estarão de maminhas ao léu, não podem ter silicone – as audições duraram três meses.
Mesmo depois da intensidade do carnaval, quando até os malandros têm dores no fígado e falta de lábia, ainda há blocos pós-carnaval nos quinze dias seguintes, um fim de festa que se estende além da quarta-feira de cinzas e que impregna a cidade de uma atmosfera meio apocalíptica, com famílias a almoçar em esplanadas enquanto passam manadas de mascarados fora de época, cantando a mesma marcha pela milésima vez, afastando-se devagar, atrás da música, como um bando de zombies no encalce de um restinho escondido de sangue.
Não consegui perceber, de imediato, a razão desta perseverança carnavalesca. Para um português o carnaval são dias chuvosos, cabeçudos de Torres Vedras, mulatas brasileiras e portuguesas tiritando as bundas de frio, uma escola de samba, em Sesimbra, chamada Bota no Rego (a sério) e uma inevitável melancolia de cada vez que começa um comboiozinho, num bailarico, ao som de “Você pensa que cachaça é água, cachaça não é água não”.
Mas no Rio, o carnaval é mais do que a benção do calor, da paisagem e dos contornos dos seus habitantes. Após uma quarta-feira de cinzas, uma amiga disse-me: “Durante uma semana fui uma pessoa diferente todos os dias. Agora tenho de voltar a ser a mesma de sempre”. Ela não falava apenas das fantasias com que se mascarara. O Carnaval, se vivido como um carioca (e duvido que todos os estrangeiros consigam senti-lo assim), é entrar num estado de alma disponível e no qual não se aplicam todas as regras dos dias normais. Talvez as emoções fortes da folia, bem como o cansaço acumulado da festa e os vapores de lança perfume e cachaça, ajudem ao transe coletivo. Mas a “viagem” do carnaval carioca é mais do que isso. É uma invejável capacidade de, como os cães ou os gorilas, viver o aqui e o agora, e tudo o que está para trás ou para diante deixa de pesar sombriamente sobre cada um. Nada mais simbólico do que o prefeito entregar todos os anos a chave da cidade ao rei momo, como se abrisse a porta para outra dimensão.
O carnaval carioca está cheio de histórias antigas e personagens, não é só o sambódromo e os blocos, mas sim um vasto álbum de memórias – e cada carioca tem o seu álbum, um impalpável diário de bordo carnavalesco, onde os afetos, a luxúria e as boas histórias ficam gravados com outra tinta e outra cor. Julgo que o mais próximo desse estado, em que tudo é possível e os gestos, as palavras e os beijos se eternizam num Best of, será uma épica viagem de férias de verão com os amigos durante a adolescência – o vigor, o despreendimento, o já, o agora, a curva a fundo, a alegria à solta.
Li em tempos o relato de uma senhora, prestes a ter uma neta, que recordava todas as diabruras carnavalescas, dos bailes de salão à praia onde se enrolou com um italiano – “Tinha areia, mas foi bom”, disse ela -, para no fim concluir que, quem pulara o carnaval daquela maneira, não poderia ser chamada de avó.
Percebo agora melhor porque o carnaval carioca se alonga tanto como as pernas do Jean-Claude Van Damme. Se a vida são mesmo dois dias, quem é que não gostaria de aproveitar, sempre que possível, uma festa que nos fizesse imortais?