Para Luiz Biajoni
Na manhã de 26 de Dezembro, casado há 30 anos, Marquinhos fazia as malas da despedida, zonzo como só fica “o último a saber”, seguro de que Cira tinha utilizado a sua gillette da barba para depilar as virilhas antes de cada encontro com o amante.
Na noite anterior, após todos os eventos natalícios, quando Marquinhos se preparava para uma sessão de TV com o seu whisky soporífero, Cira anunciara o romance com William, o salva-vidas, cujo corpo desenhado, dizia-se no Posto 11, era a inspiração para a armadura do Batman.
Marquinhos partiu sem abrir o bico ou recorrer aos direitos do chifrado, que lhe garantiriam ficar no apartamento. “Essa vagabunda que se mude para um barraco lá na casa da desgraça”, diria um dos seus amigos, talvez o Vargas, o mais castigador, ou talvez o Freitas, que há anos não conseguia esconder o tesão por Cira, ao ponto de ser obrigado a trocar a sunga pelas bermudas nos churrascos de piscina.
No aparthotel, reduto para homens descasados, Marquinhos lamentou a interrupção do seu bem estar, a falta que lhe faziam os canais de filmes, o scotch sempre com muitas pedrinhas e um dedo de água, Cira toda a noite no computador e, ainda assim, o seu rosto tremeluzindo a efervescência do ecrã, a melhor companhia para um homem de sofá.
Vargas era diferente, aposentado do exército, nadava e aprendia a partir pescoços, duas vezes por semana, em aulas de Vale Tudo. Casado, tinha namoradinhas na maior discrição. Freitas, por sua vez, era um cão aflito pelo cio permanente da cidade, casara tantas vezes como Elisabeth Taylor, embora a sua notoriedade fosse restrita a agiotas e a porteiros de inferninhos.
Só Marquinhos parecia morto para a tirania da testosterona. Há anos que o sexo deixara de ser uma ordem. Preferia a beleza das mulheres ao ato de devorá-las. Dizia que havia algo de canibalesco na luxuria, afirmava contentar-se com “o gesto de uma mulher prendendo o cabelo num rabo de cavalo”, acreditando na supremacia da contemplação sobre o toque. “Mulher agora virou museu, Marquinhos, pode olhar, mas não pode tocar?”, dissera Freitas, certa noite. Vargas mostrara-se pragmático: “Tem remédio para esse mal, Marcos Xavier da Cunha, e pode comprar em qualquer farmácia. Mas o Freitas te empresta”.
Cira tinha razão. Vargas e Freitas tinham razão. Pela primeira vez em muito tempo apeteceu-lhe partir alguma coisa, um objeto, a cara de um desconhecido, a sua própria cara. No aparthotel, bebeu uma garrafinha de whisky do frigobar e atirou-a contra a parede. O vidro era grosso, não quebrou. Tinha fome e bebeu outra garrafinha, até que já não havia mais garrafinhas para beber.
Desceu para a rua e um jato de euforia atravessou-lhe a cabeça como quando roubava cerveja ao pai e a partilhava com as amiguinhas do prédio, que se beijavam entre si, autorizando a presença de Marquinhos.
Caminhou pela orla, de repente desperto para todos os centímetros de pele, recordado das possibilidades dos romances de praia, cobiçando um beijo com saliva e língua e cerveja e fumo de baseado.
Ligaria ao Freitas, para quem o tempo entre a consoada e o revéllion servia sempre de ensaio para o Carnaval, o Freitas que começava a esbórnia na noite de 25 e só terminava no primeiro dia do ano. Não haveria vingança ou remorso, só festa. Cira que tivesse todos os orgasmos múltiplos que merecia. E ele, Marcos, jamais Marquinhos de ora em diante, deixaria o sofá pelas coxas de outras mulheres.
Caminhou junto ao mar, fazendo uma lista de resoluções para o ano novo, começando pela semana de farra na companhia do Freitas. Isso, ia ligar ao Freitas, que durante anos a fio descrevera a festa do escultor Roberto Peladão, na noite de 26, onde só entrava gente nua e bonita. Era apenas o começo. Seriam dias de bagunça erótica e estímulos químicos até ao raiar dos fogos na madrugada de Copacabana. Marcos ia fazer tudo o que ficara por fazer, ia encher a cara de absinto, tomar um ácido, ia mergulhar sem roupa na piscina de um hotel e participar de uma suruba.
“Passa a carteira, tio”.
Marcos tinha andado muito, estava perto do Leme. Dois moleques descalços cortaram-lhe o caminho. Um deles fingia ter uma pistola debaixo da t-shirt.
“Tá surdo, vovô? Passa logo a carteira e o celular. O ténis também.”
Vargas teria deslocado um braço a cada moleque. Freitas acabaria a comprar-lhes pó. Marcos fingiu não ouvir nada, passou pelos rapazes de cabeça erguida, afastou-os com os ombros como se abrisse a porta de um saloon. O sangue engordou-lhe os músculos, inchou-lhe a garganta. O coração corria a prova dos cem metros para o ataque cardíaco.
Marcos sentira-se daquela maneira ao tocar o peito nu de Cira pela primeira vez.
O toque no peito de Cira.
Nessa noite, Marcos Xavier da Cunha não dormiu sozinho nem acordou desacompanhado.
Ou, como disse Freitas, dias mais tarde, com a satisfação dos profetas:
“Por acaso tem coisa mais gostosa e mais linda nesse mundo danado, meu velho, por acaso tem?”