As diferenças foram declaradas logo na contagem decrescente para o início do espetáculo. Há quatro anos, em Pequim, Zhang Yimou reuniu 2008 homens e tambores no centro do estádio, para assinalarem, com estrondo sonoro e visual, num automatismo ímpar, a passagem de cada um dos últimos dez segundos. Em Londres, na sexta-feira à noite, Danny Boyle preferiu marcar essa contagem com o rebentar de pequenos grupos de balões. E esse contraste tão flagrante não surgiu por acaso. Muito pelo contrário, foi uma declaração de intenções, uma forma de sublinhar que a “sua” cerimónia era jogada noutro campeonato.
Há quatro anos, em Pequim, os espetadores soltavam “ohs” e “ahs” de admiração, perante a coordenação ímpar de milhares de figurantes, num elogio sem paralelo da força humana. Em Londres, os espetadores soltaram gargalhadas! E divertiram-se com uma série de gags protagonizados por alguns britânicos mais famosos. E esse foi, sem qualquer margem para dúvidas, o “cimento” que agarrou toda a cerimónia: introduzir alguns dos britânicos de maior reconhecimento mundial naquele palco global, mas criando sempre algum efeito de surpresa e até fragilidade, que os ajudava a tornarem-se mais humanos e próximos dos espetadores: Bradley Wiggins quase envergonhado a tocar o sino; Tim Berners-Lee sozinho numa arena imensa e sem saber o que fazer com as mãos; Simon Rattle a aceitar o papel de parceiro de Mr. Bean; David Beckham a conduzir um barco e… fora do relvado; Steve Redgrave, o favorito popular para acender a tocha, a levar a chama até ao estádio, mas sem dar a volta à pista; J. K. Rowling e Kenneth Branagh quase ironicamente vulgares; e, claro, a própria Isabel II, a rainha que acompanhou ao longo da sua vida toda a evolução do audiovisual, desde os “newsreel” a preto e branco às redes sociais, no momento que ficará para a história, pelo seu ineditismo e simbolismo.
Quem assistiu à conferência de Imprensa de Danny Boyle na manhã anterior ao espetáculo não ficou surpreendido com muito do que se passou depois no Estádio Olímpico – que, comparativamente com o Ninho de Pássaro, é, também ele, muito menos esmagador, mas pareceu bastante funcional. O realizador e diretor artístico da cerimónia tinha avisado que, desde o início, avisara Sebastian Coe, o presidente do comité organizador, que não podiam competir no “campeonato” de Pequim. Porquê? “Porque estamos a aprender o nosso novo lugar no mundo”, explicou ele, candidamente. “Há 100 anos nós estávamos em todo o lado”, lembrou, numa alusão ao “império onde o sol nunca se punha”. “Mas os tempos mudaram, e temos que interiorizar algum sentido de modéstia. Temos que nos sentar, lado a lado, com as outras pessoas do mundo, e não há melhor lugar para o fazer do que num estádio de atletismo.”
Danny Boyle cumpriu a missão, baseando todo o espetáculo naquilo que é, na sua visão, a herança britânica para o mundo: um povo orgulhoso das suas raízes rurais, a revolução industrial, um sentido inato de espetáculo e uma capacidade ímpar de se rirem de si próprios, mas também ideias transformadoras como o Serviço Nacional de Saúde (um dos melhores segmentos do espetáculo) e a World Wide Web.
À saída do estádio, e com muito tempo para enfrentar as longas filas para os transportes, a sua cerimónia acabou por ficar com uma memória semelhante à de um filme de James Bond. Não é grande arte, pois não, mas é sempre um momento incrivelmente divertido, bem disposto, surpreendente e com boa música. À imagem de Londres!