Correndo o risco de parecer antiquado, a verdade é que, desde que tenho consciência política, cívica, democrática (e também jurídica), que me sinto desconfortável sempre que a magistratura vem para a rua assumir posições políticas. Não me incomoda, como é óbvio, o facto de um juiz ter pensamento ou ação política. O que me incomoda é os juízes terem posicionamento político enquanto corpo organizado.
A carta aberta enviada aos deputados pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses, na última segunda-feira, é um bom exemplo da causa deste desconforto. A ASJP não veio a terreiro dizer que está contra o corte de subsídios de férias e de Natal, coisa que um qualquer outro sindicato faria sem complexo. Veio pedir aos deputados que “não suspendessem a Constituição” no momento em que decidem o seu sentido de voto no Orçamento do Estado para 2012, coisa que aconteceria, subentende-se, caso aprovassem os referidos cortes dos rendimentos dos funcionários públicos e pensionistas – o que veio, de facto, a suceder.
Embora se afirmem conscientes de que a situação das finanças públicas “exige sacrifícios e impõe um grande sentido patriótico”, consideram também que ela exige “responsabilidade e solidariedade a todos os portugueses”.
Não vale a pena lembrar aqui as diferentes médias salariais do setor público e privado. Não vale a pena comentar aqui a tese, essa sim “divisionista”, defendida por um dirigente do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado, de que é “normal” os funcionários públicos ganharem mais do que os trabalhadores do setor privado, porque têm mais habilitações – esquecendo que, no setor privado, ao contrário do público, o que não falta são salários mínimos pagos a licenciados (ou pós-licenciados, ou mestres e doutorados). Não vale a pena lembrar a quantidade de trabalhadores do setor privado que já viram os seus salários reduzidos, e em muitos casos por mais que uma vez, desde que começou esta crise. Ou os milhares que passaram para a situação de desemprego do dia para a noite, numa dinâmica da qual o setor público está protegido. Como não vale a pena voltar a explicar que o corte dos subsídios, independentemente de se estar ou não de acordo com a medida, tem por objetivo reduzir despesa pública, evitando a angariação, com mais impostos (cobrados a toda a população), de mais receita para pagar a mesma despesa.
Não vale a pena lembrar nada disto. Mas vale a pena referir que não me lembro de ver os juízes, que também são os meus juízes, os juízes dos cidadãos do setor privado, preocupados com a constitucionalidade de alguns dos problemas que atingiram os trabalhadores privados.
A questão essencial, contudo, é que a ASJP vai muito longe no seu argumentário. Dá um segundo passo – lembra que só será possível mobilizar os cidadãos “num quadro de respeito pelos princípios constitucionais da confiança, da necessidade, da proporcionalidade e da igualdade, próprios de um Estado de Direito”. E um terceiro – afirma que esse objetivo de mobilização nunca será atingido “com medidas injustas, violentas, iníquas e discriminatórias”. E um quarto – diz que essas medidas, “no limite, poderão mesmo levar a uma crise do nosso sistema democrático”. Para dar, por fim, o salto final, ao garantir (lembrar, pressionar, intimidar, ameaçar?) que “tudo farão para que a Justiça e os tribunais continuem a ser o último garante de controlo do abuso de poder e de proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos contra interesses do Estado contrários à ordem jurídica”.
Correndo o risco de ser antiquado, prefiro sindicatos de juízes, assim como da polícia e dos militares – e dos jornalistas também, diga-se -, que se limitem às questões sindicais, não caindo na tentação de fazer política fora do âmbito laboral, porque são sindicatos de setores com responsabilidades diferentes. Prefiro um país onde a conformidade das leis com a Constituição seja julgada pelos juízes… mas nos respetivos tribunais, e não num sindicato de classe. Um país onde os políticos, eleitos democraticamente, fazem as leis e determinam a política e os juízes reservam para si o papel de se “limitarem” a uma sábia e justa aplicação da lei. Um país onde os cidadãos olhem para os seus juízes e vejam neles “o último garante” da Justiça, e não um país onde os juízes definem as condições para se assumirem como tal.
É o esquecimento destes princípios básicos que coloca em risco o sistema democrático e o Estado de Direito. E os juízes, individualmente ou em sindicato, têm a obrigação, mais que todos, de ter esta verdade presente. E nos tempos que correm, mais que nunca.
PSD e CDS aprovaram as suas propostas de alteração ao Orçamento do Estado de forma a reduzir o impacto do corte dos subsídios de férias e de natal da Função Pública e pensionistas em 2012. Segundo o novo quadro legal, a base de arranque dos cortes nos subsídios (que aumentam em linha com o valor dos salários) passa a ser os 600 euros (480 euros na proposta inicial), atingindo os 100% nos rendimentos acima dos 1100 euros (mil euros, inicialmente). Estas alterações, diz o Governo, isentam cerca de 51 mil funcionários públicos e 1,2 milhões de pensionistas de qualquer redução de subsídios, já que não alcançam os 600 euros mensais. É uma medida básica de justiça social. E um reconhecimento claro da pobreza em que continuamos mergulhados. Em que alíneas da Constituição estará esta crescente clivagem social proibida?