Existe, no Exército, uma velha máxima que os militares “cavaleiros” passam de geração para geração: “A Cavalaria nunca recua: dá meia volta e avança.” Não é a primeira vez que recorro a esta analogia com os recuos das políticas dos governos de José Sócrates. Com a mesma expressão determinada com que nos convence da bondade do fecho de urgências, volta a abri-las. Com o mesmo semblante hirto com que apregoa as virtudes de um certo modelo de avaliação dos professores, acaba com ele. Com o mesmo olhar desafiador com que jura a instalação do aeroporto na Ota, muda-o para Alcochete. Com o mesmo dedo espetado com que encurta as férias dos juízes, volta a alargá-las. Sócrates não recua: dá meia volta e avança.
Mas agora é mais grave. O Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) acaba com a filosofia com que o PS se apresentou nas urnas e com base na qual ganhou as eleições. E que presidiu, até, pelo menos, a uma das escolhas ministeriais. Na campanha, José Sócrates disse que a melhor forma de combater a crise era apostar em força no investimento público. Ouve-se da boca do primeiro-ministro, nos impiedosos arquivos televisivos esta semana postos no ar: “O investimento público é a melhor forma de animar a economia, criar emprego e produzir riqueza.” Ora, no primeiro embate, o Governo cancelou os projectos de cinco auto-estradas. No segundo, adia por dois anos as linhas de TGV Lisboa-Porto e Porto-Vigo. Aguarda-se o terceiro.
António Mendonça, escolhido para ministro por dar garantias de ser, além de apóstolo do investimento público, um realizador, fica, assim, com pouco para fazer, perdido no erro de casting em que se terá transformado, sem culpa nenhuma. Sócrates não recuou perante os argumentos, por exemplo, do PSD, que criticava as auto-estradas e o TGV. Nem recuou perante a revelação repentina do endividamento nacional, que já conhecia antes das eleições e que torna o programa eleitoral, visto desta distância, e agora colocado na gaveta, ainda mais mistificador. Sócrates deu meia volta e avançou, desmentindo-se a si próprio e ensaiando uma metamorfose programática sem paralelo na nossa história recente. Mais, o PS deu aos portugueses premissas erradas para que votassem nele. Mais do que um alegado plano da carochinha para controlar a comunicação social, este logro era, só por si, motivo para novas eleições.
Vejamos um caso simbólico: um dos pontos fortes do PEC prevê a redução das deduções fiscais. Ainda sem especificar que deduções, é imaginável prever que os cortes atinjam as áreas da educação, dos seguros, da saúde… dos PPRs! Os mesmos PPRs que Sócrates, no célebre debate televisivo, com Louçã, acusou o Bloco de Esquerda de querer atacar! A confirmar-se esta intenção, o malfadado atentado contra a classe média, que Louçã, com dentadura de vampiro, queria perpetrar, seria, agora, executado pelo Governo. E porquê?
Porque, subitamente, se descobriu que o País precisa deste esforço? Se fosse por isso, Sócrates estaria perdoado. Mas a descoberta é anterior às eleições… E, em vez de, com humildade, reconhecer que o corte nas deduções se deve à necessidade de garantir receita, justifica-o dizendo que se trata de impôr uma política fiscal mais justa. Chegaremos à conclusão de que, afinal, Louçã ganhou o debate?