Passei a primeira década deste novo século metido em conflitos. Ao virar da página, em 2000, estava em Timor. Depois, foi a vez de Mindanao, nas Filipinas, do Zimbabué do senhor Mugabe, das invasões de terras e da violência política, a que se juntou uma grave crise humanitária na África Austral. Anos em que o efeito combinado da fome e da sida provocou muito sofrimento, em vários países da região. Passei, então, à estabilização da Serra Leoa e aos primeiros combates contra a utilização da África Ocidental como placa giratória, no trânsito de drogas da América do Sul para a Europa. Já no final do decénio, travar a expansão dos fundamentalismos violentos, ajudar a resolver as crises humanitárias à volta do Darfur e contribuir para uma melhor compreensão dos riscos ligados à implosão provável do Sudão, tornaram-se matérias de preocupação quotidiana. Termino os últimos dias do decénio, com grupos armados por apaziguar, reféns por libertar e zonas de insegurança por controlar. Esta situação não é única. Repete-se em vários troços da faixa do Sahel, da costa atlântica ao mar Vermelho e arredores.
Há, contudo, mais vida, para além dos conflitos, das tragédias humanitárias e das loucuras de alguns políticos. Reflectindo sobre o tempo que passou, fica-nos a impressão de que foi uma década de mudanças rápidas, mesmo nos recantos onde a pobreza continua ser a única constante. O tempo acelerou, tudo se tornou muito rápido. As telecomunicações foram a revolução mais notada. Uma transformação radical, em dez anos. Hoje, qualquer pastor nómada do deserto mais inóspito possui um telemóvel. Terras sem água, nem escolas, e com pouca saúde, estão agora ligadas ao resto do mundo, por uma ou mais redes móveis. Para não ficar para trás, os governos investiram no controlo electrónico dos cidadãos. As escutas telefónicas e a localização dos grupos armados, através do seguimento dos seus meios de comunicação, passaram a ser moeda corrente. Está tudo muito simplificado e até as ditaduras mais pobres têm acesso a esses sistemas de vigilância.
Outras coisas mudaram também. A China afirmou-se como potência mundial. A sua influência económica e diplomática no Terceiro Mundo ficou definida. A progressão dos outros países emergentes foi mais lenta e assenta, ainda, em bases precárias. Ao mesmo tempo, a ajuda ao desenvolvimento foi relegada para um canto, para dar espaço aos debates sobre as vantagens do investimento internacional e do comércio. Uma década após a declaração dos Objectivos do Milénio, o desenvolvimento parece um assunto esquecido, que será apenas desenterrado em Setembro de 2010, no palco simbólico de uma nova cimeira.
Uma segunda impressão está relacionada com um sentimento de fragilidade. Outrora, e continua a ser assim nos países pobres, as fragilidades estavam associadas com a doença e a morte, a miséria e a escassez. Essas questões perderam relevância, quando se pensa nas oportunidades que existem actualmente. Todavia, reflectindo com cuidado, talvez se deva concluir que estamos a chegar a uma fase em que os progressos obtidos podem estar ameaçados. Não é apenas a questão das mudanças climáticas e do seu impacto sobre o futuro. Nem das grandes pandemias, como a sida ou as gripes. É, acima de tudo, o facto de se ter tornado claro, nos últimos anos, que o modelo económico predominante, baseado no crescimento incessante do consumo e na exploração desregrada dos recursos naturais, está condenado. Tem de ser substituído por um sistema mais sustentável, em que a qualidade tenha a primazia, não a quantidade, mais equilibrado e capaz de promover a justiça social. Paira sobre nós a certeza que é urgente repensar a economia.
Uma outra fragilidade tem que ver com a reversibilidade dos avanços democráticos. Houve progressos sensíveis em vários países, em África e noutras partes do globo. Estive ligado a alguns desses processos de democratização. Mas a verdade é que a maioria das novas democracias é muito frágil. As instituições necessárias aos equilíbrios de poder não foram criadas. Os mecanismos de controlo dos excessos políticos não receberam apoio suficiente, por parte da comunidade internacional. Os deslizes autoritários podem acontecer, no futuro, sobretudo em momentos de crise social. Quem diria que o Senegal, por exemplo, apontado, nos primeiros anos deste século, como um modelo político, iria terminar a década a resvalar para uma governação despótica?
A insegurança é actualmente um dos factores que contribui para o sentimento de fragilidade. A noção de segurança evoluiu. Hoje não será tanto a segurança dos Estados que estará em risco. É, sobretudo, a segurança das pessoas, das populações civis. Os tempos recentes trouxeram novas ameaças. Novos medos. A proliferação dos focos de terrorismo, os ataques à bomba contra centros urbanos de primeira apanha, uma criminalidade mais violenta, melhor organizada e sem fronteiras. Os próprios agentes das Nações Unidas passaram a ser alvos de ataques, como tem acontecido no Afeganistão, no Paquistão, na Somália e no Sudão. Trata-se de um fenómeno recente. Temos ainda um novo tipo de perigos, ligados às questões de identidade. Em países onde existem comunidades de imigrantes com uma identidade religiosa, cultural ou mesmo de aparência física distinta das populações indígenas, é preciso gerir os riscos de implosão nacional com muita sabedoria. Lançar um debate, como alguns mentecaptos iniciaram há umas semanas em França, é como que abrir uma caixa de Pandora. A integração dos imigrantes de segunda geração, já nascidos nas terras de adopção, vai ser um dos grandes desafios para a década que começa dentro de dias.
Perante tudo isto, a grande lição desta década é que agora, mais do que nunca, por causa dos meios existentes e do seu impacto massivo, para o bem ou para o desastre, precisamos de pensar a sério no futuro e ter muito juízo. Como cidadãos e como comunidade de nações. As novas tecnologias fazem do século XXI o primeiro em que a humanidade partilha um destino comum. Em tempo real e a alta velocidade.