Fui percebendo aos poucos que algo não estava bem com a minha filha Francisca. Não houve um dia, uma data ou um momento em que se possa dizer que “fiquei sem chão” ou “foi um grande choque”.
Na gravidez, surgiram suspeitas de que algumas estruturas do cérebro poderiam não estar bem desenvolvidas. Fui ultravigiada na Maternidade Alfredo da Costa por vários especialistas, fiz vários exames e muitas ecografias. Não chegaram a nenhuma conclusão e sempre acreditei que estaria tudo bem.
A Francisca é a minha terceira filha, quando nasceu, os irmãos tinham 8 e 2 anos. Por volta dos dois meses, comecei logo a achá-la muito parada, molinha, dormia muito. E o pior: não segurava a cabeça. Os médicos insistiam que era tudo normal porque ela tinha nascido pequena (2 100g). Mas eu nem dormia a imaginar as doenças terríveis que ela poderia ter.
Por volta dos três ou quatro meses, ainda sem diagnóstico, a Francisca começou a fazer fisioterapia. Era um pesadelo. Ela chorava muito e os exercícios evidenciavam as suas dificuldades. Eu também chorava e só pensava que queria estar com ela num jardim e não numa clínica.
Entretanto, fez uma ressonância magnética ao cérebro e o teste genético. Veio um diagnóstico que nunca tinha ouvido falar: lisencefalia. Uma alteração genética no cromossoma 17, que faz com que o cérebro tenha partes lisas, ou seja, sem ligações neuronais, o que provoca atraso global severo do desenvolvimento. Acontece um caso em 120 mil bebés, sendo muito difícil de diagnosticar durante a gravidez porque as ecografias não permitem ver tudo.
“Talvez ande, é pouco provável que fale e quase de certeza vai ter convulsões”, explicou-nos o neurologista. Não posso dizer que foi uma grande surpresa, porque ela tinha sete meses e não se sentava, nem era capaz de agarrar um objeto, caía-lhe tudo das mãos. Era evidente que o caso era grave.
Chorámos muito, eu e o meu marido. Tentámos manter sempre os irmãos afastados dos nossos dramas e eram tão pequenos que quase nem faziam perguntas. Para eles, a mana era um bebé e pronto. Nem me lembro de algum dia ter tido uma conversa com eles a explicar o que se passava com a irmã. Foi tudo acontecendo com naturalidade no dia a dia.
Estava preocupada com a Francisca, claro, mas confesso que estava ainda mais preocupada com os irmãos. Como é que esta situação iria implicar nas suas vidas, as atividades que deixaríamos de fazer em família, a responsabilidade que iriam sentir sobre a irmã e, principalmente, que mãe iriam ter a partir de agora. Não queria que tivessem uma mãe deprimida, uma mãe zangada com o mundo ou uma mãe ausente por estar sempre em tratamentos ou terapias com a irmã. Por isso, tive sempre a consciência de que tinha de cuidar de mim. Os meus filhos mais velhos eram a minha motivação.
Quando chegou a altura de voltar ao trabalho, pedi ajuda à minha mãe para ficar com a Francisca e decidi que iria trabalhar em part-time. Mas nem assim consegui conciliar tudo. Andava exausta, parecia que tudo me escorregava das mãos. Decidi então tirar licença para assistência a filho com deficiência, mas os dias continuaram a ser cansativos e desesperantes. Talvez de uma forma ainda pior, pois passava os dias sozinha com um bebé que não fazia nada do que era suposto. Sentia-me muito, muito, sozinha, como se ninguém compreendesse a minha dor. Pensava que as outras pessoas compreenderiam melhor uma morte ou uma doença oncológica. Não que os meus amigos ou familiares se tivessem afastado. Mantiveram-se todos ao meu lado, como sempre, mas precisava de mais. Era uma desilusão constante. Estava a passar pelo luto do filho imaginado.
“Todas as mães cuidadoras se sentem exaustas”
Aos dois anos, consegui, finalmente, encontrar uma escola que aceitasse a Francisca e pensei que iria ter mais tempo para mim, mas coincidiu com a altura em que ela começou a ter mais convulsões. Muitas vezes, ligavam-me da escola para ir buscá-la porque tinha crises. Tentámos vários tratamentos, alguns até mais radicais, mas as crises epiléticas foram ficando cada vez mais frequentes, maiores e exuberantes.
No meio deste caos, a Francisca ia fazendo algumas aquisições. Começou a dizer algumas palavras e a dar uns passinhos com apoio. Eram conquistas que sabiam sempre a pouco.
Às vezes, tentava aproximar-me de outras mães nas salas de espera, mas só conseguíamos ter conversas de circunstância. Parecia que ter um filho com deficiência era um clube a que ninguém queria pertencer.
Ao longo destes anos, tentei sempre cuidar de mim. Correr, caminhar, aulas de dança, pilates, workshops vários, lições de piano, livros de autoajuda, escrever, psicoterapia, medicação, meditação, saídas com as amigas. Acho que tudo isso me ajudou a nunca ir completamente abaixo. Com o tempo, aos poucos, fui conseguindo abrir o meu coração com outras mães. Através de grupos na Internet (que odiava), decidi juntar-me a outras mães em atividades presenciais, sem filhos, e fomos percebendo que todas as mães cuidadoras se sentem exaustas, sozinhas e ninguém se importa. Só olham para os nossos filhos.
Quando se fala de cuidadores informais, pensa-se mais em cuidadores de idosos. Ser cuidador de um filho é completamente diferente, por várias razões, mas principalmente porque é para sempre. Então decidimos criar uma associação com a qual as mães cuidadoras se identificassem. De um grupo de oito mães atípicas e duas típicas nasceu a Atípicas – Associação Portuguesa de Famílias com Filhos com Deficiência ou Doença Crónica.
Com as redes sociais e o passa-palavra, crescemos muito rápido. Temos uma comunidade WhatsApp com cerca de 150 famílias, onde tentamos falar mais de nós, mães, mulheres, e menos dos filhos e das suas condições, pois para isso já existem muitos outros espaços. Tem sido muito compensador estarmos juntas, porque nos apoiamos umas às outras, somos compreendidas e os nossos filhos parecem iguais a tantos outros. Apesar de ainda ter dias complicados, cheios de desafios, sinto, finalmente, que este clube que a minha filha Francisca me obrigou a pertencer ainda tem muito para ganhar.