A minha motivação passa pela transposição, pelo que sofri em criança e consegui ultrapassar com a prática da ginástica. Nasci de oito meses, com icterícia e asma. Quando nasci, o meu pai ficou pior do que estragado porque era a terceira rapariga [Risos].
Comecei a sentir que era uma pessoa fraca aos 3 ou 4 anos. Por causa da asma, não podia fazer um esforço, tinha logo hemoptises. Bastava descer umas escadas a correr para perder sangue pela boca.
Por indicação médica, comecei a fazer ginástica respiratória e a ir à praia. Os banhos de sol na Ericeira, onde o meu pai arrendou casa, eram um suplício. Para uma criança, estar tanto tempo quieta era difícil.
Lembro-me de que tinha crises de falta de ar constantes, até que pelos 8 anos, pouco depois de entrar na escola, as hemoptises pararam. Na escola primária, senti que era gente. Já corria, jogava ao mata e comecei a ter outros interesses. Quando estava em casa, passava a vida a correr e a saltar. Trazia um bocadinho de giz da escola e marcava os saltos na passadeira de oleado do corredor.
Mas o deslumbramento foi quando entrei para o [liceu] Filipa. Além das aulas de ginástica Ling [método do sueco Pehr Henrik Ling], com corridas, saltos e cambalhotas, havia o desporto escolar, organizado pela Mocidade Portuguesa. Virei o liceu de pernas para o ar, porque estava sempre a correr nos corredores e tinha muitas vezes o azar de cair nos braços da reitora ou de uma professora.
No 3º ano, o meu pai achou que era melhor eu mudar de liceu e fui para o Dona Leonor, porque havia o carro operário, só oito tostões pela ida e volta entre a Praça do Chile e a Rua da Junqueira [onde era então o liceu]. Foi aí que começou a minha história desportiva.
No jogo dos polícias e ladrões, eu era sempre o ladrão porque levava o tesouro e ninguém me apanhava. Um dia, o pai da minha maior amiga, a Rafaela, que coordenava o atletismo no Belenenses, apareceu no liceu e perguntou-me se queria ir para o clube. “Posso falar com o seu pai?” E eu: “Nem pensar!” Se ele nem me tinha deixado entrar nos clubes desportivos da Mocidade… Copiei sempre a sua assinatura [Risos].
Comecei no atletismo e logo a seguir o professor Reis Pinto foi buscar-me para o voleibol. Tinha aulas até às quatro ou cinco da tarde e depois ia para o Belenenses. Ao meu pai disse: “Vou estudar para casa da Rafaela, que é muito boa aluna.”
Fui campeã regional, campeã nacional e recordista do peso. Até que apareceram as televisões, o meu pai comprou logo uma e, uma noite, viu uma reportagem sobre a preparação do Belenenses. A certa altura, disseram: “Adelaide Patrício, a grande revelação.” Apanhei uma grande tareia e fui proibida de ir aos treinos.
Ao fim de uma semana, o presidente do Belenenses foi lá a casa. Quando o meu pai me disse: “Milai, podes voltar aos treinos”, corri a fechar-me no quarto, tal era a revolta. O meu pai não me dava a mão para eu fazer um percurso de vida, tinha sido preciso um estranho? Sei que a geração dele era assim, mas fiquei revoltada.
Quando voltei ao Belenenses, o meu pai passou a acompanhar-me nas competições e, num tempo em que não havia extravagâncias, voltava para casa com pastelinhos de Belém para todas nós. Mais tarde, revelou-se um avô extremoso e uma ajuda preciosa. Como estive na competição até aos 38 anos, os meus dois filhos, a Mafalda e o Alex, passavam a semana com os avós, só vinham para casa à sexta. O meu marido, Dario Fernandes, era então um ícone no Colégio Militar.
No Dona Leonor, fui péssima aluna. Não tinha tempo para estudar, porque fiz parte da primeira seleção de voleibol e os treinos eram no Norte. Quando disse ao meu pai que queria ser professora, ouvi: “Não quero filha minha feita saltimbanca.” Mas respondi-lhe: “Quer queira, quer não, nem que tenha de sair de casa.” E fui para o INEF [Instituto Nacional de Educação Física].
Antes de acabar o curso, dei aulas na Mocidade, ali ao pé da Cruz Quebrada. Dava tudo: badmínton, vólei, basquete, danças regionais… E, no último ano, o professor Moniz Pereira levou-me como jogadora e treinadora para o Sporting.
Ao fim de dois anos, concluí que não era aquilo que queria. Os clubes não olhavam para os valores pessoais. O desporto é muito além das vitórias e das derrotas. A disciplina, a assiduidade, o respeito, a colaboração… Dar o nosso máximo, respeitar os adversários e aprender com eles.
O desporto traz saúde física e mental e ajuda a fugir das solicitações negativas. Foi isso que consegui no Filipa. Hoje, continuo a dar-me com as antigas alunas, são as minhas meninas.
No Filipa, constituí uma equipa de vólei mal entrei, em 1965. Um dia, o professor Moniz Pereira apareceu para ver um jogo da neta e, no final, veio ter comigo e disse-me: “Valeu a pena” (eu ter saído do Sporting). Era uma frase muito dele, até escreveu um fado.
Reformei-me em 2004, mas continuo no liceu a dar o treino. O meu trabalho é voluntário e estou lá todos os dias, das seis da tarde às dez e meia da noite. Tenho miúdas espetaculares e o apoio das direções. O feedback é ótimo. O Filipa ocupa os lugares cimeiros no ranking nacional e o desporto faz parte integrante.
A vida não é só estudar, por isso sou contra o numerus clausus. Um bom profissional não se dita pelas boas notas. Devia-se considerar o percurso além da escola e recuperar os exames de admissão à faculdade. Tirar um curso de que não se gosta e depois trabalhar numa coisa de que não se gosta… Não se pode ser feliz. O dinheiro não é tudo, a realização pessoal é quase tudo.
Tenho o sonho de a Educação Física chegar aos bairros mais problemáticos. E outros dois sonhos, estes impossíveis: que o dia tivesse 48 horas; e que nesse tempo eu só envelhecesse um dia. Nesta altura, teria 43 anos [Risos].
Gostava de chegar ao fim sem perder as minhas qualidades. Todas as manhãs, faço dez minutos de alongamentos, almoço em casa e depois vou para Lisboa. Na Avenida de Roma, é raro o dia em que não encontro uma antiga aluna ou pais das miúdas de agora. Valeu a pena. Ainda vale a pena.
Depoimento recolhido por Rosa Ruela