Quando tinha 1 ano e meio, diagnosticaram-me surdez profunda, tendo eu nascido numa família toda ela de ouvintes. O diagnóstico já veio tarde. Na altura, os médicos até acharam que havia a hipótese de ser autista, porque não respondia às interações. Depois veio a descobrir-se que, na verdade, era surdo profundo.
Em bebé, colocaram-me um aparelho auditivo, e a minha mãe, doméstica, aprendeu rapidamente a língua gestual portuguesa, para comunicar comigo, tornando-se mesmo fluente. Embora também a tivesse aprendido, o meu pai, gestor agrícola, não era tão fluente como a minha mãe.
Até que fui para uma escola de referência para alunos surdos, em Benfica, Lisboa. Nessa escola, que frequentei até ao 4º ano, tive professores que comunicavam comigo por língua gestual, a minha primeira língua. No programa da escola, havia duas sessões de terapia da fala por semana, o que os meus pais acharam pouco. Por isso, puseram-me a fazer mais duas sessões semanais, fora da escola. Assim aprendi a falar. Depois também aprendi a leitura labial.
Posso dizer que não tive uma infância diferente das dos outros. Na escola, conseguia expressar-me e compreender. Em casa também conseguia fazer isso. Tinha amigos surdos, na maior parte. Como amigos ouvintes, tinha os meus primos e um ou outro amigo que, fora da escola, conhecia nas férias. Mas quem eu preferia mesmo eram os meus amigos da escola, com os quais me conectava com muita facilidade.
Quando acabei o 4º ano, fui para uma escola regular. Aqui é que senti uma grande diferença. De repente, estava numa escola em que não havia língua gestual, não havia amigos que falassem a minha língua e, embora já conseguisse oralizar, não me sentia nada à vontade com a minha oralidade. Era obrigado a fazer um esforço muito maior para poder comunicar. Foi um choque: senti-me uma espécie de extraterrestre por não me encontrar no meu habitat natural, que era o mundo dos surdos, como acontecia na escola de referência.
Foi uma fase muito difícil. Não tinha grande experiência de estar com pessoas ouvintes, tirando em minha casa e com a minha família. Conheciam-me desde pequeno, sabiam estar comigo e eu com eles. Eram afetivos e sensíveis. Agora numa escola enorme e regular, era muito difícil manter essa ponte.
Entretanto, no 6º ano, mudei de escola, não estava a aguentar estar ali, passava os dias a chorar. Foi mesmo muito difícil para mim a adaptação ao mundo dos ouvintes. Mas quando fui para outra escola regular, as coisas começaram a melhorar. Também porque já começava a saber como me integrar e me adaptar. Comecei a ter amigos ouvintes. No 8º ano, ganhei força e pensei: “Sou surdo, diferente, tenho de procurar uma forma de trabalhar com isto. Não posso continuar a sofrer ou a não decidir bem.”
Voltando um pouco atrás – quando acabei o 4º ano, houve a hipótese de passar para outra escola de referência para alunos surdos. Os meus pais visitaram-na e não encontraram o nível de exigência que queriam para mim. Decidiram, por isso, inscrever-me numa escola regular, para me integrar no mundo ouvinte, e para aprender a escrever e a ler bem. Acharam que ia potenciar mais as minhas capacidades e que, a longo prazo, seria melhor para mim.
“Sentia-me a flutuar”
Entrei na Universidade de Lisboa, para tirar Psicologia, mas tive medo de que eles não tivessem cuidado comigo. Por isso, optei por uma faculdade privada, o ISPA [Instituto Superior de Psicologia Aplicada]. Como era mais pequena, achei que, se calhar, se preocupariam mais comigo. Mas também achava que não ia conseguir tirar o curso.
E aconteceu uma surpresa. Estava muito bem preparado – valeu a pena o percurso que tinha feito até ali. Durante três anos, não fui às aulas teóricas. Os auditórios eram enormes, não tinha intérprete, não conseguia acompanhá-las. Ia para a biblioteca ler livros uns atrás dos outros, o que exigiu de mim um esforço muito maior. Quando foi para tirar o mestrado, em Psicologia da Educação, estava tão exausto que pedi ao responsável pedagógico que, dessa vez, a faculdade se adaptasse a mim. Então, puseram uma mesa em “1”, para eu poder acompanhar toda a gente, nem que fosse por leitura labial, e ser mais fácil para mim a participação na aula.
Aos 20 anos, entretanto, apercebi-me de que não sentia uma verdadeira pertença a nenhum dos mundos – nem ao dos ouvintes, nem ao dos surdos. Sentia-me a flutuar sem ter uma âncora, em grande instabilidade. Isso levou-me, em 2014, aos 23 anos, a tomar a decisão mais difícil da minha vida: resolvi pôr um implante coclear. Por pouco não morri. Fui submetido a três intervenções cirúrgicas, com duas infeções pelo meio, uma das quais por uma bactéria hospitalar. O que me sucedeu é muitíssimo raro. Demorei um ano para ativar o implante, quando o normal é essa ativação acontecer um mês após a operação.
Essa minha decisão teve dois lados. Um negativo, porque a tomei achando que eu é que estava mal, eu é que tinha o problema e tinha de o resolver, para me tornar “oficialmente” ouvinte. Na parte positiva, elevou a minha qualidade de vida – hoje ouço muito melhor, falo muito melhor, é-me muito mais fácil acompanhar reuniões, e por aí fora. Isto sem falar nas experiências únicas que a partir daí vivenciei, como, por exemplo, ouvir a minha respiração, o mar, a música, o vento…
Hoje sinto que faço parte da comunidade, embora, por acaso, tenha as duas culturas: a dos surdos e a dos ouvintes. Tendo duas línguas, posso estar nesses dois mundos, e o meu principal objetivo profissional é ajudar a criar uma ponte entre as duas comunidades – que continua a não existir e ainda é um grande desafio.
Depoimento recolhido por J. Plácido Júnior