Tinha 25 anos quando me foi diagnosticada diabetes tipo 1; não tinha sequer antecedentes familiares. Fui insulinodependente mais de 20 anos, até aos 49. A insuficiência renal apareceu aos 45, em consequência da diabetes mal controlada. Além da restrição de líquidos – no fim do dia, só podia ingerir meio litro no conjunto de todas as bebidas – e de perder a função urinária, comecei a fazer diálise, dia sim dia não, uma verdadeira prisão. Toda a minha vida era feita em função dos horários da diálise.
Um dia, estava na praia e vi o dedão direito negro, assustei-me. Conclusão: amputação do dedo, que, na verdade, é quase meio pé. Os médicos tentaram todas as soluções, desde medicação a tratamentos na câmara hiperbárica, para não ter uma infeção generalizada. Nessa altura, em 2011, andava de canadianas, mas a ferida nunca chegou a fechar e a solução era a amputação da perna, abaixo do joelho.
O mesmo viria a acontecer no pé esquerdo e, quando perdi a vontade de comer, cheguei à conclusão de que tudo estava a ser afetado. Estava inscrito em dois hospitais para fazer o transplante reno-pancreático, era o meu maior objetivo. Valia a pena lutar pelo pé? O médico não garantia nada… então, pedi-lhe que cortasse a perna esquerda, por onde cortou a outra. Quando me aparece um obstáculo, não penso no problema, penso na solução.
A amputação tinha de acontecer. Informei-me, pesquisei na internet e vi que havia outras pessoas que seguiram com as suas vidas. No hospital, davam apoio psicológico, mas nunca precisei. Sempre aceitei bem a situação. O grande problema das pessoas, quando são amputadas, é pensarem no que vão deixar de fazer, que a vida que tinham antes acabou e que vão ficar numa cadeira de rodas. Andei alguns meses de canadianas e apoiado pelo meu pai até receber as próteses, o modelo mais adequado para mim, através da Segurança Social.
Não pensava: “Se tivesse já as próteses…” Mas, sim: “Quero as próteses para tentar andar.” Não sabemos qual é a nossa capacidade de adaptação. Felizmente, adaptei-me muito bem, melhor do que com um andarilho que a fisioterapeuta me deu.
Ao princípio, ajustei o meu carro para ter os comandos de acelerador, travão, embraiagem e mudanças no volante, mas não conseguia… utilizava na mesma os pés. Entretanto, comprei um carro e a única diferença é ser automático.
Por vezes, sentia a dor fantasma, parecia que tinha comichão no dedo do pé ou que me doía o pé. Sabia que estava tudo relacionado com o sistema nervoso do coto; então, pressionava um pouco e passava. É uma sensação estranha ter comichão numa parte do corpo que já não se tem. Hoje, quando toco na extremidade do coto, é a mesma sensação de antigamente, de tocar na minha perna, no meu joelho.
“Ando bastante a pé”
Tenho um segundo par de próteses, feitas de uma fibra sintética mais leve e mais resistente, mas têm um problema no encaixe e, depois de ajustadas, não podem sofrer grandes alterações. O pé e o tornozelo da prótese têm um movimento lateral; posso inclinar-me e tenho flexibilidade, isso ajuda a equilibrar-me. Adaptei estas para ir à praia, para conseguir ir ao mar. Falta um forro no pé de neoprene, para ir a pé para dentro de água. Mas, como fui transplantado, devo evitar a exposição solar. Por isso, não vou há alguns anos à praia.
Não passo o dia a pensar que não tenho as minhas pernas. Lembro-me quando, por exemplo, vou descer umas escadas, porque preciso de ir de lado e de me segurar no corrimão.
À noite, dispo-me e sento-me na cadeira de rodas; vou para o quarto, passo da cadeira para a cama e durmo. Quando acordo, vou de novo para a cadeira e sigo, ainda sem próteses, para a casa de banho. Faço a minha higiene, tomo banho de joelhos na banheira e visto-me. Depois, calçar as próteses é como calçar os sapatos. Na verdade, só uso a cadeira de rodas de manhã.
Fui dono de uma pastelaria durante muitos anos, em que passava muitas horas em pé, mas deixei de trabalhar. Tenho muito tempo livre e ando bastante a pé. Aqui, em Setúbal, faço boas caminhadas na Avenida Luísa Todi, para lá e para cá, duas vezes. As subidas e descidas são mais difíceis, mas depende da inclinação, é uma questão de equilíbrio. Cruzo a perna e tudo, mas não devo; não é bom para o coto porque faz torção.
Correr é possível, mas tem de se ter uma prótese adaptada. Se quiser começar a correr, corro; depois, não consigo parar de repente. Numa aflição, corro de certeza!
Antes das duas amputações, nunca tinha praticado desporto; a seguir, joguei andebol em cadeira de rodas desportiva, durante cinco anos. Jogava no campeonato nacional sem próteses e ganhei taças e medalhas. Também experimentei o ténis de mesa.
Por vezes, sentia a dor fantasma, parecia que tinha comichão no dedo do pé ou que me doía o pé. Sabia que estava tudo relacionado com o sistema nervoso do coto; então, pressionava um pouco e passava. É uma sensação estranha ter comichão numa parte do corpo que já não se tem
O meu médico diz que estou cada vez melhor. Desde 2013, quando recebi um rim e um pâncreas, é inquestionável que ganhei qualidade de vida. A diabetes tinha que ver essencialmente com o controlo da alimentação, mas passei a pensar nas restrições, porque engordo. Quando à diabetes se juntou a diálise, foi uma confusão, já que certos alimentos que podia comer, por ser diabético, eram desaconselhados por ter insuficiência renal. Não podia comer tomate, muitas verduras e fruta por causa da frutose; era preciso ter atenção ao ferro, ao potássio, ao cálcio.
Com o transplante duplo, deixei totalmente de ter preocupações com a alimentação. Já posso comer um bolinho descansado. Posso comer como qualquer pessoa, não devo abusar, como qualquer pessoa. Era terrível a restrição de líquidos, e se a diabetes puxa a sede… Era uma batalha. Agora, posso beber o que quiser e devia, por causa do rim, mas até me esqueço de beber água.
Também me senti livre. A diálise, dia sim dia não, era uma prisão. Não podia estar ausente de casa muitos dias, e ir de férias era difícil. No final de 2021, comprei uma viagem e fui um mês para o Brasil. Entretanto, já fui a Dublin, na Irlanda, a São Miguel, nos Açores, ao Funchal, na Madeira, e dei algumas voltinhas por Portugal. Antes, isso era impossível. scalheiros@visao.pt
Depoimento recolhido por Sónia Calheiros