Não tive a sorte de ter uma família que me impulsionasse a cozinhar. Tenho glaucoma congénito, o meu olho direito nasceu sem qualquer funcionalidade, enquanto o esquerdo é muito mirrado. O problema surgiu quando, aos 25 anos, quis ir morar sozinha e só sabia abrir pacotes de batatas fritas, latas de salsichas e de atum, e que a massa se cozia em água.
Para aprender a cozinhar, pesquisava muito em blogues de receitas fáceis. Quando, pela primeira vez, tentei fazer um bolo, não sabia que se tinha de pré-aquecer o forno; então o bolo nunca mais cozinhava!
As pessoas acham que os cegos têm os sentidos mais apurados. Prefiro dizer que os temos mais trabalhados, é diferente. As investigações indicam que 80% da informação captada é visual. Portanto, os cegos, não tendo esses 80%, têm de trabalhar os outros 20% para tentar chegar o mais próximo possível aos 100% necessários.
Mas é verdade que, na culinária, os outros quatro sentidos ajudam muito. Se estiver a cozer batatas, não preciso de ir lá espetar o garfo para saber se estão prontas. O amido da batata na água a ferver gera um cheiro diferente. O som da água a borbulhar no início da fervura, ainda limpa, é diferente do da água a borbulhar quando já tem o amido da batata, ou da massa ou do arroz.
Para saber se algo está cozinhado quando o retiro do forno, o cheiro também é diferente, mas, se for com um garfo e bater um bocadinho, percebo o som da crocância. Outro exemplo: o pão, quando está cozinhado e lhe damos uma pancadinha, tem um som oco, porque o amido lá dentro já cresceu; quando a massa ainda está crua, gera um som baço. Isto vai-se aprendendo com o tempo.
Numa ida às compras, o pior são as embalagens. Existe legislação [lei nº 33/2008, de 22 de julho] a dizer que os hipermercados [área superior a 300 m2] têm de disponibilizar rotulagem em braille a pedido do consumidor. Quando faço as compras online, tenho de lhes dar 48 horas, no mínimo, para fazerem a nova etiquetagem e virem entregar. Estamos sempre dependentes – ou as impressoras estão avariadas ou a única pessoa que sabe fazer as etiquetas está de baixa médica. Há sempre problemas! Também posso ir às compras presencialmente e pedir um assistente para acompanhamento, mas isso implica passar horas e horas entre corredores e prateleiras.
Não gasto dinheiro em roupas e sapatos, mas perco-me com equipamentos de cozinha. Quando as máquinas são manuais, só com botões, não há problema nenhum, pois sei qual é a função de cada um. Mas a Bimby é um problema, porque quem desenvolveu este robô de cozinha não acrescentou uma voz a ler as instruções daquele sistema operativo. Consigo que o meu telemóvel com iOS vá lendo o que aparece no ecrã.
No meu podcast Cozinhar Com o Coração, o episódio a explicar como se usa a Bimby é o mais ouvido. As pessoas cegas estão ávidas de poder ter um robô de cozinha que fale.
A AirFryer é muito simples, é quase como usar o micro-ondas. A única coisa que tenho medo de usar na cozinha é o óleo quente – nem a panela de pressão elétrica, com tranca enquanto tem pressão, me assusta tanto.
“A cegueira não me chateia nada”
Gostava de saber mais sobre como fazer o empratamento e toda a questão estética das receitas, porque eu não vejo, mas à minha volta os outros veem; não estou isolada do mundo. Recebo amigos em minha casa e também tenho gosto em que olhem para o prato e digam que está bonito.
Gosto muito de comer, mas ser celíaca [intolerância hereditária ao glúten] limita-me muito; queria experimentar alguns restaurantes e comidas de outros países, mas não o faço. As outras pessoas não têm noção de quão complicada é esta doença. O glúten enfia-se nos poros da madeira de uma tábua de cozinha onde é cortado um pão ou outro alimento com glúten, por mais que a tábua seja lavada.
O único sítio onde me sinto 100% segura a comer é na minha casa. Sinto que a minha doença celíaca me limita muito mais do que a minha cegueira. Se me dessem a escolher entre as duas, dava já a doença celíaca de bandeja e ficava com a cegueira, que não me chateia nada – não conheço a vida de outra maneira.
Entre os ouvintes do meu podcast, há pessoas que me escrevem a dizer que também não veem e gostavam de fazer as receitas, outras que nunca pensaram que uma pessoa cega cozinhasse e perguntam como é que não me queimo no forno ou não me corto com a faca, e outras, que não sei se são cegas ou não, a dizer que foi graças aos meus episódios que começaram a cozinhar. Quando assim é, cumpri o meu objetivo.
Infelizmente, também me escrevem a contar que gostavam de fazer tarefas em casa, de ter mais autonomia, mas que a família não permite. Há muitos jovens que gostavam de ter a própria casa, mas a família não os apoia – dizem que, depois, não vão ser capazes de cuidar de si nem da casa. Muitas vezes, a família é o pior castrador que as pessoas com deficiência, qualquer que seja, têm.
Quando se pergunta a alguém, sem qualquer deficiência, “se tivesse um acidente e ficasse com uma sequela permanente e limitadora, o que é que não queria?”, a maioria responde que a cegueira seria a pior. Mas as pessoas cegas são aquelas que conseguem atingir uma vida o mais parecida possível com a vida das pessoas sem deficiência.
Quem anda numa cadeira de rodas tem imensa dificuldade devido às acessibilidades; as pessoas surdas têm a barreira da língua, da comunicação. Nós conseguimos estudar, ter um emprego, bem ou mal ir aqui e ali, falamos com toda a gente, podemos pedir ajuda. Mas como o mundo é tão visual, as pessoas acham que, se não vissem, seria uma catástrofe, mas não era. Atravessar a rua sem ver pode parecer difícil, mas cortar um bife num prato de bitoque, sem deixar cair as batatas fritas à volta, é muito mais complicado.
Depoimento recolhido por Sónia Calheiros