Nunca quis ser médica, decidi-o já no 12º ano, a poucas semanas de entrar para a faculdade. A vontade de ser pediatra foi crescendo ao longo do curso, por ser uma especialidade em que contactamos com doenças de várias áreas. É completamente diferente cuidar de um recém-nascido, de um lactente com 12 meses, de uma criança com 3 anos ou de um adolescente. Quando se escolhe ser pediatra não é para tratar crianças que podem morrer. A pediatria é uma especialidade de cura, de pouca medicação e poucos internamentos. O grande desafio é lidar com as crianças, mas também com os seus pais, que nos exigem respostas às suas inquietações. Uma criança doente será sempre contranatura.
Os meus doentes colocam questões muito simples: “Ainda é possível assistir à festa de anos do meu irmão?” ou “Ainda é possível fazer a viagem à Disney que tanto gostava?”.
É frequente a criança preocupar-se com o que acontecerá se morrer. Se a mãe ficará bem, se se irá esquecer dela, como ficarão os pais quando ela partir porque não têm outros filhos… “A minha mãe não chora ao pé de mim, mas eu sei que não anda bem.” Temos de dar-lhes espaço e ouvir o que, por vezes, é reprimido pelas famílias. Demora algum tempo até os pais se consciencializarem da importância de conversarmos com as crianças e com os seus irmãos sobre o que está a acontecer. É preciso perceber o que a criança doente nos quer perguntar sobre o que está viver.
Temos de compreender onde as crianças querem estar, quais as suas expectativas, desejos e preferências. Algumas querem saber as opções terapêuticas, qual o prognóstico e se há cura.
Temos famílias que nos surpreendem muito nos últimos dias de vida dos filhos. Parecia que nunca iam aceitar o desfecho menos favorável e, no final, dizem-nos: “Sempre soube que isto ia acontecer.”
Trabalhar em cuidados paliativos pediátricos não é triste, nem deprimente, como as pessoas possam imaginar. A maioria das nossas hospitalizações têm muita vida, atividades e coisas para fazer. Nos internamentos de pediatria, temos educadoras e professoras para quem frequenta a escola e fica mais de duas semanas – é uma forma de irem desligando do hospital e aproximando-se do regresso a casa. Das estratégias de distração fazem parte tablets, mas também balões bem grandes, em forma de coração, para assinalar datas festivas, épocas importantes e obstáculos ultrapassados; e um unicórnio, um peluche muito fofinho, especialmente apreciado pelos mais pequenos, para que o ambiente seja o mais “desospitalizado” possível. Também damos altas, nem todas as crianças em cuidados paliativos vão morrer.
Obviamente, há momentos emocionalmente muito difíceis e dolorosos. Nós também temos de fazer o luto das crianças que acompanhamos, mas 95% dos nossos dias não são a falar sobre a morte, são a falar sobre a vida. É um desafio constante conseguirmos ajudar famílias que estão num processo de grande sofrimento. E percorrer com elas um caminho que, no final, não tem a bandeira da cura – mais de 90% dos casos são incuráveis –, mas garante qualidade de vida, conforto e viver cada dia da forma mais plena possível. É uma área em que se pensa que a Medicina deixa de dar resposta, mas a Medicina continua a dar muitas respostas.
Palavras que tiram a voz
Nos cuidados paliativos, o trabalho em equipa é fundamental. É em equipa que decidimos como vamos falar com cada família e que partilhamos as conversas difíceis. Na maior parte dos casos, há tempo para prepararmos a comunicação da má notícia. A maioria das doenças são progressivas e conseguimos estimar o que vai acontecer ao longo do tempo.
A comunicação tem um efeito tão importante e tão potente como uma medicação bem ou mal dada. Temos famílias muito marcadas por erros de transmissão de profissionais de saúde com quem contactaram.
Refletimos muito depois de cada má notícia e cada profissional tem de ter as suas próprias estratégias. Lidamos com muitas situações em que, num segundo, a vida roda 180º graus, e aprendemos a valorizar o que temos de bom.
Há casos que nos emocionam bastante porque são situações mais próximas, acompanhámos as famílias durante um longo tempo. Para mim, é muito importante estar presente, da maneira mais próxima possível, nas últimas horas e dias da criança. Uma questão fundamental para o meu luto, enquanto profissional, é saber que fiz tudo o que estava ao meu alcance para ter a certeza de que as coisas corriam o melhor possível. O nosso trabalho não se esgota no dia em que a criança morre, continua no apoio à família. Saber que tudo correu da forma mais serena possível ajuda-me muito.
Guardo frases que, por mais anos que viva, não esquecerei. Acompanhámos um menino que morreu aos 9 meses, com um défice visual grave, entre outros problemas, e a mãe dizia: “Se, pelo menos, pudesse dar-te os meus olhos.” Fica-se sem voz, sem fôlego. Outros momentos que não esqueço são os mais próximos do fim da vida, em que uma mãe dizia: “Sei que está na hora de deixar a minha filha partir. Dói muito, mas é a melhor forma que tenho de a amar para o resto da minha vida.”
Aceitar que chegou a hora da separação é uma forma brutalmente dolorosa de se amar, mas é a mais extraordinária; deixar todo o egoísmo para trás e compreender que chegou o momento e que é melhor assim. Aprendemos muito com essas famílias. Chora-se quando é preciso. A regra é não podermos chorar mais do que os pais, mas há fins de vida que nos emocionam muito e não há mal nenhum em chorar.