“Sozinhos todos. Ninguém se entende. A humanidade inteira está reduzida à solidão de cada um dos seus indivíduos”.
Desconfortavelmente pertinentes e atuais, as palavras proferidas por Almada Negreiros há quase 100 anos, durante a conferência Direção Única (realizada no Teatro Nacional de Almeida Garrett em Julho de 1932), revelam o espírito, mais do que modernista, moderno, que animava o seu corpo.
Como todos os que são modernos, Almada tentava perceber o tempo em que vivia através da lente do Futuro. Lia nas entrelinhas dos acontecimentos, tentando salvar, antes que fosse demasiado tarde, o que ainda havia para salvar dessa humanidade reduzida à solidão.
E, como todos os que são modernos, tinha mais sonhos do que o tempo da vida humana permite concretizar. Um desses sonhos era um díptico de duas peças teatrais, Deseja-se Mulher e S.O.S., ao qual teria chamado Tragédia da Unidade, que reflete precisamente sobre a solidão a que está votada uma sociedade onde indivíduo e coletividade foram dissociados um do outro, onde cada um acredita bastar-se a si mesmo, simultânea e paradoxalmente convencido de não ser “bastante” para essa sociedade, e o conceito de “todos” deixou de ser a soma das partes para passar a ser uma justaposição de eus.
Em 2024, num mundo onde as angústias de Almada Negreiros são tragicamente atuais, o Colectivo Sul decidiu dar vida a SOS – Aquela Noite, um espetáculo que, partindo do projeto não concretizado de Almada, Tragédia da Unidade, inclui ainda outros textos do autor, dentro e fora da escrita dramática, como a peça em um ato Aquela Noite, excertos da conferência Direção Única, comentários de Pierrot e Arlequim ou O Meu Teatro.
Ao longo dos 90 minutos da peça, que sobre ao palco do Teatro do Bairro de 20 a 24 de novembro, Carolina Ferraz, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Rita Durão, Rita Loureiro e Sofia Marques fazem-nos entrar na cabeça de um dos maiores modernistas portugueses, servindo-se das palavras do próprio Almada para nos recordarem que “os sábios não sabem dizer o que sabem e os palhaços sabem…mas não são sábios” e que, afinal de contas, “somos todos iguais. Todos. Estamos todos à espera da mesma coisa. Viver”.
Somos levados a refletir sobre o modo como tudo, da natureza à alma humana, é uma dualidade e que uma das partes morre sem a outra, e vice-versa. O mundo é feito de luz e de sombra, de forças motrizes e forças cuidadoras, de procuras e de encontros, de indivíduos e de coletivos, de “nós todos e cada um de nós”.
O trabalho exímio de “corte e costura” faz-nos esquecer que estamos a ouvir excertos de conferências, discursos, ensaios e peças de teatro, dando origem a uma espécie de narrativa inédita, que parece ter sido escrita precisamente assim como se apresenta, o que revela também a inabalável coerência temática das diversas obras de Almada Negreiros e da visão que este tinha sobre o mundo.
“À medida que íamos lendo os textos que ele escreveu em áreas tão diferentes, sentíamos que parecia haver um modelo filosófico de pensamento que ele próprio estava a tentar criar”, comentam os atores.
Que modelo é esse? Caberá ao espetador decidir. Afinal de contas os “ templos têm asportas abertas para o público e no interior cada qual encontrará a imagem da sua devoção”.
Ainda assim, é possível que a ressoar dentro de muitos fique a fórmula 1+1=1, imortalizada em Deseja-se Mulher. Após deixar a sala de teatro, asseguremo-nos, porém, de, com o passar do tempo, não cair na tentação de lhe tirar o sinal de mais e substitui-lo com a letra “e”, construindo um futuro de “mundozinhos individuais, pequeníssimos, microscópicos”, onde estamos ao lado dos outros, mas não com eles, e vivemos “sozinhos todos”.
› S.O.S. – Aquela Noite > Teatro do Bairro – 20 a 24 de novembro > Teatro Experimental de Cascais – 29 de novembro a 1 de dezembro > Teatro Municipal Joaquim Benite – 20 e 21 de dezembro