“O festival não tem tema nem estes espetáculos não têm nada em comum, a não ser a excelência de quem os faz”, diz Rodrigo Francisco, diretor artístico do Festival de Teatro de Almada, que assinala 40 anos e 41 edições. Assim, não se encontra aqui nenhum tipo de unidade.
Não há um foco nos 50 anos do 25 de Abril, apesar de haver uma peça e uma exposição a evocar a revolução. Não há uma unidade linguística: o português é dominante, mas há espetáculos em francês, inglês, italiano, árabe e até num dialeto napolitano.
Não há sequer uma coerência de formato, pois dentro da programação há espaço para marionetas, malabarismo, musicais, dança, um espetáculo de cabaret e até para concertos e debates.
Um dos mais aguardados momentos é Relative Calm, a nova colaboração de Robert Wilson com a coreógrafa Lucinda Childs, com quem trabalhou, em 1975 e 1976, no icónico Einstein on the Beach, a partir da música de Philip Glass. Esta peça tem o mesmo título de uma coreografia de Childs, estreada, em Estrasburgo, em 1981, da qual a coreógrafa acabou por aproveitar apenas um dos quadros para esta versão.
A ideia de revisitar e construir uma nova peça ocorreu em plena pandemia, quando os dois decidiram juntar-se num teatro vazio a trabalhar. O resultado é um espetáculo visualmente impactante, nas fronteiras entre o teatro, a dança e a ópera moderna, sobre a música de Job Gibson, John Adams, mas também a Pulcinella, de Stravinski. Estreou-se em Roma, e, 2022, e chega agora a Portugal, tendo como palco o CCB, instituição com que há muito o Festival de Almada mantém.
Por falar em mitos, o Fórum Romeu Correia vai receber uma das mais lendárias companhias de marionetas do mundo, com um dos seus mais arrojados espetáculos. A Tempestade pretende mostrar Shakespeare como nunca se havia visto antes.
Tudo partiu do velho desejo de Eduardo De Filippo de representar Shakespeare. Só que já não tinha idade para o papel. Então, resolveu montar um espetáculo de marionetas, chegando mesmo a gravar a voz da maioria das personagens, antes da sua morte.
Entretanto, a companhia Carlo Colla & Figli rebuscar as vozes e os desenhos das marionetas e trá-lo ao público desde 1985. A companhia que já tinha estado em Portugal, no Teatro da Trindade, regressa agora para um espetáculo, que conta com 12 marionetistas e 150 marionetas.
Outro grande regresso é o alemão Peter Stein, uma das grandes figuras da encenação mundial, com espetáculos de ópera, que aqui surpreende pela simplicidade. Volta a Tchekhov, figura de referência do teatro russo, mas não às principais obras que o notabilizaram, antes a três pequenas peças da sua juventude. Crise de Nervos significa sobretudo um regresso |à base de teatro, segundo a máxima: “O teatro são três tábuas e dois atores”.
E, como costuma acontecer, há um espetáculo de honra. Todos os anos o Festival de Almada pede ao público para votar no seu favorito dando como recompensa, aos criadores e ao próprio público, o regresso do espetáculo ao festival no ano seguinte.
Nesse contexto, recupera-se Jogging, da atriz e encenadora libanesa Hanane Hajj Ali. Uma peça corrosiva, incómoda, que fala de mulheres que mataram os seus próprios filhos.
Do cabaret a Eurídice
Importante presença é também a de Olivier Py. O conhecido programador e encenador, que antecedeu Tiago Rodrigues na direção do festival de Avignon, tem, desde há décadas, uma outra faceta: criou a personagem Miss Knife, um travesti, através da qual faz espetáculos de cabaret.
Olivier Py foi muitas vezes criticado pela sua insistência na personagem, mesmo em ocasiões que requeriam alguma solenidade, como o espetáculo de despedida de Avignon, mas sempre a manteve, consolidando-a e desenvolvendo-a ao longo dos anos. Este novo espetáculo chama-se E agora, Miss Knife tem um par… o pianista Maestro S, alter-ego de Antoni Sykopoulos.
A propósito de música e teatro, em Sem tambor, francês Samuel Achache propõe-nos uma diversão à volta da Lieder, de Schmann, segundos as palavras do própria a ideia é mesmo destruir Schumann, numa comédia, que passa pelo cabaret e pelo burlesco. Achache, que é uma figura de referência do novo teatro musical, colabora, nesta peça, com o diretor musical Florent Hubert e tem com base estrutural as personagens de Tristão e Isolda.
Ainda dentro dos espetáculos musicias, em Onde vou à Noite, Jeanne Desoubeaux propõe uma versão contemporânea do mito de Orfeu e Euridice, a partir da ópera de Christoph W. Gluck.
Já em 1859 Hector Berlioz havia feito uma versão para mezzo-sprano e a cantora Pauline Viardot interpretou então o papel vestida de homem. Desde então que a ideia de uma mulher interpretar Orpheu se inscrevi nos cânones da ópera. Em Onde vou à Noite, Jeanne Desoubeaux leva a questão mais além: “Se são duas mulheres que cantam porque não assumir que são duas mulheres que se amam?”
A dança vai ao teatro
Em zona de fronteira encontra-se o ciclo Dança na Sala Grande, em que o teatro pisca o olho a uma outra arte performativa, que lhe é próxima: a dança. Três espetáculos que retomam o pulso da dança contemporânea. Destaca-se, logo a abrir, Full Moon, a última criação do coreógrafo sérvio Josef Nadj.
A peça é sequência do movimento rutura com a suas obras anteriores, iniciado em 2021, com Ommar, também apresentado no Festival de Almada. Apresenta, num palco vazio, oito bailarinos africanos, com os quais nunca havia trabalhado, numa narrativa que vai até às origens da humanidade.
A francesa Mathilde Monnier parte da série televisão H24, que reunia contos de 24 autoras sobre violência doméstica, para contar as história de nove mulheres, em Black Lights. Uma obra de denúncia, com um sentido político, feita com um elenco internacional que integra a portuguesa Isabel Abreu.
O destacada coreógrafo americano Merce Cunningham é a inspiração de LIFE event n.º 3, pelos Gandini Juggling. O projeto multidisciplinar, cheio de adrenalina e movimento, que mistura dança, performance, teatro e até malabarismo. De resto, no início da peça, o próprio Sean Gandini faz-nos uma ‘introdução ao malabarismo’, realçando que essa disciplina consiste numa fusão de matemática, música e ritmo.
Brecht, Zeldin & As Mil e uma Noites
Como é natural, o teatro português tem uma presença forte no Festival. Toda a programação é feita de reposições ou peças estreadas recentemente. É justo destacar a prata da casa.
Além da dor, de Alexander Zeldin, foi considerado uma das melhores estreias de 2023 e o festival é o pretexto ideal para repô-la em sala. Esta foi a primeira vez que o seu autor permitiu a encenação da sua peça por outros, neste caso por Rodrigo Francisco, o próprio diretor da Companhia de Teatro de Almada (ver entrevista).
Uma peça forte, retrato dos tentáculos subversivos do capitalismo no mundo do trabalho, tendo como contexto uma fábrica de processamento de carnes, em que os trabalhadores são subcontratados, não lidando verdadeiramente com o seu patrão.
Das peças portuguesas a mais em foco é, contudo, As Mil e Uma Noites – a Irmão Palestina, que integra as comemorações dos 50 anos do Teatro o Bando. Sucedendo à Irmã Persa, a peça é escrita por duas figuras quase lendárias das artes performativas em Portugal: o dramaturgo João Brites e a coreógrafa Olga Roriz, e conta com a Banda Sinfónica Portuguesa.
Em palco juntam-se de forma subtil os atores d’O Bando com os bailarinos da Companhia de Olgo Roriz. A coreógrafa explica: “Há quatro bailarinos e quatro atores, mas não se percebe quais são os bailarinos, nem quais sãos os atores”. Já João Brites explica: “É um ato político e estético, querer ver o outro como uma riqueza para nós próprios”.
Os Artistas Unidos trazem mais uma adaptação de Enda Walsh, autor irlandês que já levaram à cena oito vezes. Em Remédio, o autor propõe uma reflexão sobre a doença mental, por meios, pouco ortodoxos, ao mesmo tempo que mantém uma postura metateatral. Aliás, como o ator e encenador António Simão assegura: “A metateatralidade e o grotesco estão são presentes em Walsh”
António Pires, por seu lado, repõe Mãe Coragem, de Bertolt Brecht, peça em que brilha Maria João Luís, no papel principal. O encenador explica que a encenação foi sofrendo várias modificações ao longo dos tempos e acabou por optar por algo bastante cru e próximo do original, embora tenha retirado todas as referências de época. António Pires comenta: “É incrível a atualidade que o texto ganhou”.
Também volta a estar em cena Fonte da Raiva, peça escrita e encenada por Cucha Cavalheiro. A encenadora rebusca as memórias, para se situar numa remota aldeia no interior do país, no início dos anos 60 e fazer daquele microcosmos uma base para um retrato mais global.
Do estado do mundo a Salgueiro Maia
O Festival também guardou espaço próprio para a chamada criação contemporânea, com criadores mais jovens ou com ideias diferentes de prática teatral..
Entre eles, Inês Barahona e Miguel Fragata completam o díptico O Estado do Mundo, um alerta para as questões climáticas. A peça anterior teve mais do 200 apresentações. Esta, com o nome Terminal (Estado do Mundo) é fruto de uma longa investigação, que foi dos Açores a França, e teve a sua estreia no prestigiado festival de Avignon. Miguel Fragata explica, aue a peça tenta responder à pergunta: “Quais as melhores saídas possíveis de um lugar onde não podemos permanecer?”
Presença de última hora, fruto de um espetáculo cancelado, é Entrelinhas, de Tiago Rodrigues e Tónan Quito. Curiosamente, a direção do festival substituiu uma peça que não pôde vir por um espetáculo sobre um espetáculo que nunca chegou a acontecer. Entrelinhas é um monólogo interpretado por Tónan Quito, em volta do mito do Rei Édipo.
Do Norte vem Manuela Rey Is In Da House, com encenação e dramaturgia de Fran Núñez. uma coprodução do Centro Dramático Galego com o Centro Dramático de Viana. Tudo em volta de Manuela Rey, uma promissora artista luso-galega, que se estreou aos 15 anos no Teatro D. Maria II, no ano de 1857, e teve uma carreira gloriosa até à sua morte precoce aos 26 anos. A peça ressuscita a lenda.
Também de Viana do Castelo. chega-nos Salgueiro Maia: Cartografia de um monólogo. Nos 40 anos da revolução, o Centro Dramático de Viana estreou 25A74, com dramaturgia e interpretação de Ricardo Simões, a partir do livro de memórias de Salgueiro Maia intitulado Capitão de Abril – Crónicas do Ultramar e do 25 de Abril. Agora o ator e encenador produz um novo texto em que mescla a história de Abril com as suas próprias histórias, sozinho em palco.
Exposições, concertos e debates
Esta é de resto apenas uma das iniciativas ligadas à revolução. A mais visível talvez seja a grande exposição 25 de Abril: Os dias, as pessoas e os símbolos, com montagem e conceção plástica de José Manuel Castanheira, a partir do espólio da Ephermera, de José Pacheco Pereira.
Esta é a segunda de uma série de quatro exposições em volta do mesmo tema promovidas pelo Festival de Almada. E, segundo Castanheira, até agora a mais difícil de montar. O cenógrafo perdeu-se nos longuíssimos corredores do arquivo para fazer uma seleção criteriosa daquilo que quer expor.
Recorde-se que continua patente a exposição 54 recados para José Afonso, na Assembleia da República, também conceção e pinturas de José Manuel Castanheira, a partir do espólio da Ephemera. O artista e grande cenógrafo presenteia o teatro de Almada ainda com uma instalação de homenagem a García Lorca, Atrás da cortina podemos ver o estado do mundo.
A ligação forte entre o festival e a música também se observa através de concertos propriamente ditos, como é o caso dos já tradicionais Concertos na Esplanada. Este ano, uma programação eclética que inclui Cante Alentejano, com Cantadores do Desassossego, de Beja, e o Grupo Coral e Etnográfica da Academia Sénior de Serpa, Lisboa-Bissau, com um trio de jazz composto por José Grossinho (guitarra elétrica), Gueladjo Sané (percussão) e Diogo Duque (trompete e guitarra), Nuno Carpinteiro Trio e Rita Vian, Quarteto Dela; Tributo Zeca Afonso, Quarteto Paulo Pontes, Balklavalhau, Curcumbia; Asteria; Seiva, Suzie and the Boys, Catman & the Blues Doozers, 4tUbOs; Bairro do grito, in.dia duoguitar e RioLisboa cantam Revolução.
Nos habituais Encontros da Cerca, estarão em debate as novas formas de censura e autocensura, em dois painéis com o título geral Criação, Ideologia e Identidade. A curadoria é de Jorge Vas de Carvalho, e contará com as presenças de Filipa Oliveira (curadora) Maria Rueff (atriz) Sérgio Sousa Pinto (deputado e presidente da comissão dos negócios estrangeiros), Henrique Raposo (escritor) Raquel Freire (realizadora) e Margarida Vale de Gato (tradutora). Isto além das tradicionais conversas com artistas na esplanada.
Também estão abertas inscrições para um curso de dramaturgia, dirigido por Rui Cardoso Martins e está patente uma exposição de pintura Ilda David, artista que concebeu o carta do festival deste ano.