Depois da estreia em Aveiro, Capital Nacional da Cultura em 2024, Glimmer, de Rui Horta e dos Micro Audio Waves, seguirá em digressão nacional por Ourém, Caldas da Rainha, Viseu e Guimarães, entre outros palcos.
Nas artes vivas muitas vezes se procurou o espectáculo total. A inspiração estaria no teatro clássico grego, quando diferentes elementos – do texto à música instrumental, dos adereços e figurinos aos movimentos na orquestra, dos ritmos corais aos monólogos declamados – concorriam na construção de um corpo dramático, carregado de sentido historiográfico, psicológico e social. O género operático nasceu, na viragem do século XVI para o XVII, com tal fito, perseguindo (mais do que prosseguindo) esse ideal clássico. A combinação da música com as artes plásticas, plasmada na cenografia, nos figurinos e no jogo de luzes, e destas com a representação e com as movimentações coreográficas em palco – numa cena especialmente preparada para o público – tinha e tem uma potência magnífica. Com efeito, essa combinação pode envolver cada espectador (desde que este seja capaz de proceder à “suspensão da descrença”) na ação dramática e no jogo artificioso dos enganos, dos bons enganos, sejam estes catárticos ou prazenteiros.
Desde a sua origem, a ópera, sendo um género autónomo, com os seus cultores e os seus códigos, foi influenciada e influenciou por sua vez outras linguagens cénicas, incluindo a dança. O século XVIII tornar-se-ia, por exemplo, o grande período da ópera-ballet com compositores como André Campra e Jean-Philippe Rameau. Esses cruzamentos permaneceram e foram de certo modo revistos e ampliados nos séculos XX e XXI, quando as tecnologias áudio e vídeo e novos géneros espectaculares vieram alimentar formas de hibridismo.
Em Portugal, tal como noutros países, diversos criadores têm explorado diferentes media, combinando materiais e dispositivos, instaurando uma assinatura autoral nos modos de mixagem. Um deles tem sido Rui Horta, cuja lugar de partida é a dança, mas que, graças às redes de cumplicidades que vai estabelecendo com outros criadores e com os técnicos de cena, se destaca como um artífice na composição global e na arquitectura cénica.
Enquanto espectáculo, Glimmer é assim apresentado como uma criação que acontece com música, dança, vídeo, artes digitais, moda, iluminação e arquitectura. Um concerto pop feito com luz, som e energia. A banda Micro Audio Waves, com quem Rui Horta já colaborara em Zoetrope em 2010, e as novas canções de Cláudia Efe (voz), acompanhada por Flak (guitarra e programações), C.Morg (teclados e programações) e Francisco Rebelo (baixo) criam uma atmosfera fluida e imersiva. Atmosfera atravessada por presenças diversas: desde logo pela bailarina e coreógrafa Gaya de Medeiros, mas também por elementos não humanos, como os arbustos, que num certo momento são transportados para palco e que se tornam zonas de camuflagem, instaurando uma camada que evoca a questão do equilíbrio ambiental; também os conteúdos digitais preparados por Guilherme Martins e os clips vídeo de Stella Horta, bem como os figurinos de Constança Entrudo, juntamente com o design de David Ventura e Marco Madruga confluem para a ambiência fluida. Peça de um hibridismo pop, lembrando a estética de uma Laurie Anderson, Glimmer instala-se então sobre a condição intangível e incompleta da cena, deslizando sobre transparências, ao mesmo tempo que dá materialidade à luz. Como se escuta repetidamente pela bela voz de Cláudia Efe, é preciso que o corpo esteja totalmente conectado. Conectado com todos os elementos, flutuando quando é necessário, ou enraizado como um arbusto, sobretudo ensaiando futuros onde todos caibam, sem excepção.