França assistiu esta semana, com horror, ao início do julgamento que envolve um homem que drogou a sua esposa ao longo de dez anos, disponibilizando o seu corpo inanimado num fórum virtual a mais de 70 homens, com idades entre os 21 e os 68 anos, que se dirigiam à casa da vítima para a violarem sexualmente. Um bombeiro, um jornalista, um comerciante, um reformado, um estafeta e, até mesmo, um agente prisional. Boa parte deles homens casados, pais, cidadãos aparentemente exemplares. O marido da vítima não queria dinheiro: ora queria filmar, ora participar na agressão. Tudo aquilo lhe dava prazer.
Ao mesmo tempo, no Uganda, o namorado de uma atleta olímpica regou-a com gasolina e ateou-lhe fogo na sequência de uma discussão. Com queimaduras em 80% do corpo, a mulher acabou por morrer. Há duas semanas, era publicada uma reportagem sobre um canal português de Telegram, com mais de 70 mil participantes, onde homens e rapazes partilham diariamente fotos privadas de mulheres, sem o seu consentimento, a par de informações pessoais sobre as mesmas e apreciações abjetas de cariz sexual sobre os seus corpos. A troca de informação trata as mulheres como peças de carne no talho. Há cerca de um mês, na Índia, foi encontrada, numa floresta, uma mulher algemada a uma árvore: o marido tinha-a ali deixado há 40 dias, com o intuito de ela morrer devagarinho. De todos os inimagináveis perigos e ameaças que esta mulher terá vivido, o pior foi mesmo o sadismo do homem que um dia jurou amá-la. Para sempre. Tudo isto devia dar-nos que pensar.
A violência machista contra as mulheres é um problema à escala global. Transversal a países, continentes, classes sociais, crenças religiosas, idades. Não podemos generalizar e dizer que todos os homens são potenciais agressores. Não são. Contudo, não podemos fechar os olhos à realidade sobre estes crimes que, historicamente, pautam a vida feminina. Da violência doméstica à sexual: nem todos os homens, mas sempre um homem. Infelizmente, é uma absoluta constatação estatística. Sabemos, por exemplo, que na União Europeia são assassinadas, em média, 50 mulheres todas as semanas em contexto de violência doméstica. E que em território europeu, 1 em cada 5 mulheres já foi vítima de violência física e/ou sexual por parte de um parceiro ou ex-parceiro íntimo, número que sobe para 1 em cada 3 quando falamos da realidade mundial.
A própria casa continua a ser o lugar mais perigoso quando se é mulher, sendo no seio relacional e familiar que mais agressões acontecem. São os homens com quem mantêm ou mantiveram relações de intimidade os seus principais carrascos, a par dos pais e dos irmãos. Na base está uma dinâmica de poder, aliada a um desrespeito e desumanização feminina a que assistimos diariamente. De forma sistémica, as mulheres ainda são tidas como “carne para canhão” para tantos homens que, em compadrio, alimentam tal ciclo de violência. Muitas vezes, os próprios agentes da máquina da segurança e justiça.
Não silenciem as mulheres com o #NotAllMen
Esta tomada de consciência sobre os efeitos perigosos da misoginia estrutural – ao contrário do que alguém me respondia há uns dias, a uma reflexão sobre os tentáculos das narrativas machistas – não serve para tentar meter as mulheres contra os homens. É, sim, uma necessidade absoluta de se tirar a cabeça de debaixo da areia e ir à raiz do problema. Problema este assente numa mentalidade patriarcal que continua a pôr a mulher num lugar de subordinação em relação ao homem, até mesmo logo na infância. E que alimenta, desde tenra idade, a agressão como resposta primária da suposta “boa masculinidade”. Principalmente quando se responde às mulheres que desafiam, seja de que forma for, essa equação em que o homem tem direito à palavra e vontade final.
Cada vez que sai um caso mais mediático de violência misógina, surge amiúde a narrativa do #NotAllMen, ou em português, “nem todos os homens”. Como se o desconforto provocado pela assunção empírica de que os crimes violentos contras as mulheres são perpetrados esmagadoramente por uma maioria de homens, fosse um ataque direto aos que não o fazem. Não é. Percebo o desconforto. Contudo, é tempo de percebermos que este impulso automático de defesa da honra masculina facilmente se sobrepõe ao que nos devia realmente estar a incomodar a todos e todas: o facto de diariamente tantas meninas e mulheres continuarem a morrer ou a sofrerem as piores sevícias às mãos de homens. O problema é de género. E em vez de silenciarem as vozes femininas (que é, em boa parte, o que esta hashtag faz), talvez fosse mais importante ouvirem-nos. É o que os aliados fazem: ouvem, dão a mão e ajudam a ultrapassar o problema, tornando-se agentes ativos na alteração de paradigma.
É tempo de questionarmos porque persistem este tipo de comportamentos. Não só a desumanização implícita das mulheres, como a dinâmica predatória de poder, em bando. É urgente desmontar tais dinâmicas de hegemonia masculina. É urgente responsabilizarmos os agressores. É urgente ensinar também às mulheres a noção do direito à inviolabilidade dos seus corpos. É urgente educar para o respeito mútuo, independentemente do sexo ou género. É urgente, enquanto sociedade, deixarmos coletivamente claro que tais comportamentos não serão tolerados, nem tampouco sairão impunes. E é urgente que todos os homens que não são agressores – e são muitos! –, todos aqueles que estão do lado certo da narrativa, partam para a linha da frente da responsabilização masculina, de mãos dadas com as vítimas de agressões, ao invés de optarem pela apatia e o comodismo. Porque a revolta deve ser de todos, homens e mulheres.