Tive o privilégio de conhecer bem Carlos Paredes, para quem, apesar da diferença considerável de idade que nos separava, depressa passei, ainda adolescente, a ser simplesmente “o amigo Nery” (como ele era, simetricamente, o “amigo Paredes”, num protocolo tácito que nunca achámos necessário superar) e um parceiro frequente, ao longo dos anos, de longas conversas sobre todas as músicas, mas também sobre história e sobre a sociedade, a política e a vida em geral.
Fui sempre, por outro lado, um admirador incondicional da sua obra, e por isso mesmo sempre me pareceu fascinante o desafio de procurar situá-lo no contexto mais amplo da vida cultural e artística portuguesa do seu tempo e, por outro lado, de tentar compreender melhor a lógica interna da sua escrita e da sua execução tão intrinsecamente originais.
Em várias ocasiões, umas vezes ainda em sua vida, outras na sequência próxima da sua morte, tive a oportunidade de escrever sobre a sua música, mas em cada novo ensaio me iam surgindo novas interrogações, novos ângulos de análise, novas pistas de leitura que só confirmavam a dificuldade de definir um fenómeno tão multifacetado e ao mesmo tempo tão coerente na sua aparente diversidade.
Cumprem-se agora cem anos sobre o nascimento de Carlos Paredes (CP) e 21 sobre a sua morte. É uma boa ocasião para refletirmos, já com a perspetiva mais ampla e a serenidade acrescida de alguma distância temporal, sobre a singularidade e a relevância invulgares daquele que foi sem qualquer dúvida um dos mais extraordinários criadores da Música Popular portuguesa do século XX.
Gostaria de aproveitar esta ocasião para enunciar, muito sinteticamente, algumas das questões que me parecem mais interessantes para esse caminho de reflexão, e faço-o aqui, de algum modo, num encadeamento livre de tópicos e de ideias, sem uma especial preocupação de aprofundamento ou de sequência estruturada.
A minha primeira questão é – se quisermos – de ordem “genética”
A minha primeira questão é – se quisermos – de ordem “genética”: de onde vem, e em que contexto se enquadra a arte de CP? E a meu ver a resposta tem de ser a da tradição específica da canção de Coimbra, tal como esta se tinha definido na geração anterior à sua na chamada “geração de ouro” de seu pai, Artur Paredes, e de uma plêiade de cantores, poetas e compositores notáveis como Edmundo de Bettencourt, António Menano, Paradela de Oliveira ou Armando Goes, entre outros.
É verdade que, como os seus contemporâneos José Afonso, Adriano Correia de Oliveira ou Luís Goes, CP viria a contestar muitos dos aspetos desse legado e a incorporar na sua música outras referências portuguesas e internacionais, mas há traços incontestavelmente coimbrões que permanecerão nela até ao fim da sua carreira:
- uma cantilena em longas frases expressivas;
- o ritmo muito livre em que o tempo forte do compasso é apoiado intensamente mas ligeiramente antecipado e em que o percurso entre cada acentuação e a seguinte é desenhado com um rubato generoso, sobretudo nos ritmos ternários;
- a preferência pelas tonalidades menores, frequentemente com algum toque modal;
- o uso de passagens em acordes dissonantes e percussivos a alternarem com os momentos de melodias acompanhadas de caráter fortemente lírico;
- a estrutura formal rapsódica, com sucessivas secções contrastantes, pontuadas ocasionalmente por recapitulações em jeito de ritornelo.
Paredes saiu de Coimbra aos seis anos de idade, mas Coimbra nunca saiu verdadeiramente da sua música, mesmo que reconfigurada por múltiplas outras referências.
E dessas outras referências musicais, quais terão sido as mais atuantes? Seria tentador procurar encontrar equivalentes em outros grandes instrumentistas-compositores do seu tempo em outros géneros, como os da Música Popular espanhola, brasileira ou afro-americana, mas com toda a franqueza não consigo identificar traços comuns entre Paredes e um Paco de Lucia, um João Gilberto ou até, mais remotamente, um Django Reinhardt, para lá do traço comum do génio que todos partilharam (e isto apesar da parceria tão importante com Fernando Alvim, que tinha sido um dos grandes introdutores da Bossa Nova em Portugal).
Paredes saiu de Coimbra aos seis anos de idade, mas Coimbra nunca saiu verdadeiramente da sua música, mesmo que reconfigurada por múltiplas outras referências
Quando muito, não excluo algum eco distante da música brasileira das décadas de 1930 e 40, quer tanta difusão tinha tido, nesse mesmo período, no nosso País (estou a pensar no “Carinhoso” de Pixinguinha, no “Chão de Estrelas” de Sylvio Caldas, ou no virtuosimo instrumental de Jacob do Bandolim), ou mesmo, pela mesma razão, em alguns dos tangos de Carlos Gardel. Mas, ainda aqui, seria uma afinidade já herdada do caldo de cultura da geração anterior da tradição de Coimbra.
O que me parece mais plausível, mesmo que como um pano de fundo distanciado, é a influência de dois dos géneros musicais eruditos que CP mais frequentemente gostava de ouvir em disco: por um lado a música instrumental do barroco, em especial as suites e partitas de Bach (lembro-me, a este respeito, da sua proposta entusiástica de que fizéssemos juntos um disco de guitarra portuguesa e cravo, de que só o consegui dissuadir explicando-lhe insistentemente que não estava de modo nenhum à sua altura como cravista), e por outro lado a grande tradição do pianismo romântico, sobretudo no que tocava à liberdade rítmica da figuração melódica nos noturnos de Chopin ou às grandes curvas emocionais dos concertos de Rachmaninov (o seu pianista favorito era Sviatoslav Richter).
O que me parece mais plausível, mesmo que como um pano de fundo distanciado, é a influência de dois dos géneros musicais eruditos que CP mais gostava de ouvir: a música instrumental do barroco, em especial as suites e partitas de Bach, e a grande tradição do pianismo romântico
Relação de amor-ódio com a guitarra
Uma outra faceta sobre a qual vale a pena refletir é a da verdadeira relação de amor-ódio – por menos plausível que à primeira vista isso possa parecer a quem o ouça tocar – que CP tinha com o seu instrumento. Para ele, como tantas vezes mo disse expressamente, a guitarra portuguesa era um instrumento fascinante, pelas suas capacidades expressivas e pelo seu caráter tímbrico único, mas intrinsecamente imperfeito, com uma sonoridade à partida desequilibrada entre agudos e graves e um sistema de afinação irracional.
Para ele, a sua música resultava de um autêntico combate físico com a guitarra, até encontrar as soluções técnicas que lhe permitiam superar o que considerava serem os seus defeitos estruturais e extrair dela
Para ele, a sua música resultava de um autêntico combate físico permanente com a guitarra, até encontrar as soluções técnicas que lhe permitiam superar o que ele considerava serem esses defeitos estruturais e extrair dela a sua verdadeira essência expressiva.
Por isso mesmo me lembro bem da impressão trágica que me causou, em 2000, a audição das dezenas de takes sucessivos das suas últimas sessões de gravação, em 1993, quando se faziam já sentir os efeitos da doença anquilosante que começava a afetar-lhe o domínio técnico soberano que sempre tivera, como se esse combate fosse agora cada vez mais feroz – para cada uma das passagens magníficas que acabaram por poder utilizadas na montagem final do seu último disco, a belíssima Canção para Titi, de 2001. Havia dezenas de tentativas falhadas, e sentia-se nas fitas a sua frustração e a sua raiva perante uma luta que tinha consciência de vir em breve a perder por completo.
Projetos artísticos interdisciplinares
Paredes, que era um homem de cultura muito vasta, gostava de participar como músico em projetos artísticos interdisciplinares e era capaz de se adaptar de forma ideal ao caráter de cada projeto. Foi o que sucedeu, no caso do cinema, com o filme Rendas de Metais Preciosos, de Cândido Costa Pinto, e logo em seguida com os Verdes Anos e o Mudar de Vida, de Paulo Rocha; no do teatro, com as peças O Render dos Heróis, de José Cardoso Pires, e António Marinheiro, de Bernardo Santareno, e mais tarde com a sua associação regular ao Grupo de Teatro de Campolide, de Joaquim Benite; no da poesia, como parceiro de gravações de poemas declamados por José Carlos Ary dos Santos ou Manuel Alegre; e por fim no da dança, com a música ao vivo para o bailado Danças para uma Guitarra, uma coreografia de Vasco Wellenkamp para o Ballet Gulbenkian.
Mas talvez por esse elemento de desafio interior profundamente pessoal que, como atrás referi, estava presente na sua relação com a guitarra, tinha nítida dificuldade em interagir com outros músicos.
As grandes exceções a esta realidade são, evidentemente, as de Fernando Alvim e de Luísa Amaro, os seus violistas acompanhadores, que, cada um de sua forma estavam numa total sintonia com o seu discurso rítmico idiossincrático e se lhe adaptavam: Alvim com uma intuição perfeita sobre o momento exato em que era necessário apoiar a resolução final de cada melodia da guitarra, ao fim de um longo recitativo melódico sem qualquer aparente métrica fixa; Luísa investindo menos no apoio rítmico e mais numa teia harmónica delicada envolvente.
Já as suas experiências registadas de diálogo com outro solista, como na gravação de 1983 com António Vitorino d’Almeida no piano, ou na de 1990 com Charlie Haden no contrabaixo (e Rui Veloso confessaria que o mesmo lhe sucedeu numa situação idêntica ao vivo com a sua guitarra elétrica) se traduziram, em minha opinião, numa evidente dificuldade de comunicação entre parceiros, com CP a seguir a lógica do seu próprio discurso musical – por sinal fascinante – mas sem verdadeiramente dialogar com o seu interlocutor.
Reflexões finais
Uma última reflexão que gostaria de aqui partilhar é a da frustração que não podemos todos deixar de sentir face à dimensão relativamente limitada, no plano quantitativo, do legado artístico de CP.
Primeiro porque começou tarde a sua carreira – as suas primeiras gravações, ainda como acompanhador, são de 1957, com seu pai, Artur Paredes, e de 1959, com o cantor de Coimbra Augusto Camacho, e o primeiro EP a solo, já com Fernando Alvim, é de 1962. Depois, em 1967 e 1971, respetivamente, vieram os dois grandes LPs mais emblemáticos, a Guitarra Portuguesa (logo seguida pelo EP Balada de Coimbra) e o Movimento Perpétuo, que o revelaram efetivamente ao grande público, passados já os 40 anos.
Pelo caminho tinham ficado um emprego administrativo de rotina no Hospital de São José, desde 1949, e os 18 meses de prisão pela PIDE, impeditivos de uma dedicação integral a uma plena carreira artística.
O 25 de Abril interrompeu o que parecia ser um itinerário segurado de primeira consagração internacional, e levou-o antes a optar por uma militância cívica e política à margem do circuito profissional, com constantes atuações para públicos populares em recintos muitas vezes informais, sem as menores condições técnicas de apoio e sem qualquer difusão mediática.
Em 1988 surgiria ainda um novo álbum de originais, o Espelho de Sons, mas em 1993 a doença interromperia brutalmente, de forma definitiva, a sua carreira. Viriam ainda, em 1996, Na Corrente, reunindo gravações inéditas dos anos de 1971 a 73, em em 2001, a já referida Canção para Titi, resultante da derradeira série de sessões de estúdio de 1993.
Foram sucessivos obstáculos atrás de obstáculos – primeiro a necessidade de sobrevivência fora da esfera musical, depois a repressão da ditadura, em seguida a dedicação empenhada a uma causa em que acreditava, por último a maldição de uma doença degenerativa – todos eles a impedirem o que poderia ter sido o normal desenvolvimento de um percurso criativo que tivesse gozado de outras oportunidades.
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Mais uma razão para prezarmos a herança preciosa do legado discográfico que apesar de tudo nos conseguiu deixar, para a difundirmos, para a levarmos às novas gerações, para a estudarmos, para a pormos em contexto como parte fundamental da banda sonora essencial da Cultura portuguesa do século XX.
E para isso seria triste se, mais uma vez, perdêssemos – como em boa parte a perdemos no caso do de Amália – a oportunidade aberta pela celebração deste centenário para que da simples efeméride possa ficar uma marca perene.
Há algumas boas notícias, como a da anunciada reedição expandida do estudo excelente de Otávio Fonseca, pela Tradisom, ou a do projeto de uma exposição biográfica itinerante com forte conteúdo pedagógico, promovida por um grupo de Coimbra, e sabe-se e o Ministério da Cultura já divulgou uma ampla programação das comemorações do centenário.
Mas será, por exemplo, que desta vez a RTP aceitará disponibilizar ao público, em vídeo e nas plataformas digitais disponíveis, os registos audioviduais de Carlos Paredes de que dispõe, ou que a Valentim de Carvalho terá o apoio necessário para se poder abalançar uma tão urgente reedição da sua obra fonográfica integral, que saiu já em 2003?