Como falar de Carlos Paredes (CP) sem repetir o lugar-comum? Ninguém ignora que um grande músico, um músico memorável, é o que, além do domínio pleno do instrumento e da execução técnica, usa essas aptidões para criar e transmitir ideias, sentimentos e emoções com originalidade autêntica; e, assim, com a mais expressiva sensibilidade, entusiasma o público, que desfruta e partilha uma superior experiência de beleza.
Quando, nos verdes anos, eu aprendia a tocar guitarra, a que chamamos viola, ouvia os seus intérpretes clássicos, Segovia, Yepes, Bream, Williams. O meu pai sugeriu que completasse as audições com um LP, Guitarra Portuguesa (1967), de CP.
O suspeitoso preconceito desfez-se ante o virtuosismo técnico e a energia artística, que libertavam aquelas cordas da mera função de acompanhar a voz ou integrar grupos de música popular, para as transformar num instrumento de concerto, que assumia na sua nova dimensão sonora obras para ele compostas especificamente e se elevava a uma dignidade de consumado valor solístico.
Em harmonia com as prodigiosas qualidades do instrumentista, sobressaía em Paredes o fascinante compositor, criador de um repertório original, de dimensão absolutamente clássica, elaborado a partir de heranças populares e urbanas (sobretudo da balada coimbrã, a que se vem chamando, por conveniência, fado).
Em harmonia com as prodigiosas qualidades do instrumentista, sobressaía em Paredes o fascinante compositor, criador de um repertório original, de dimensão absolutamente clássica
A que cumes de beleza pode ser levada a coexistência original de tradição e inovação. E a amplitude da sua curiosidade de homem culto assimilava também outras linguagens e elementos dos diálogos com músicos de várias áreas.
Sobre as colaborações artísticas, sempre me inquietou a tensão, para mim evidente, entre a larga disponibilidade de Paredes para partilhar o palco e o disco com diversos intérpretes e o seu temperamento dominantemente solístico.
Nunca por vincado narcisismo de sobressair, sendo a sua uma personalidade de grandeza humilde e generosa, mas pela energia natural que o animava desde o primeiro ataque das cordas, e que, por força da marcada convicção técnico-interpretativa, dificilmente poderia ceder a liderança.
Amadureci nos discos as experiências de felicidade auditiva e testemunhei tamanha grandeza nos encontros fulgurantes que eram os concertos nos quais Carlos Paredes se transcendia, a improvisar e a reinterpretar sobretudo as suas composições, encarnando a guitarra no próprio corpo intenso, vibrante, viril, dele tão fisicamente inseparável como as cordas vocais do cantor.
Carlos Paredes é um músico clássico, no sentido de quem, pela visão artística e qualidades de compositor, virtuoso e intérprete, realizou uma renovação criativa incomparável (como já o pai, Artur Paredes, que, inclusivamente, revolucionara a tipologia da guitarra e sua construção, mas numa orientação pessoal distinta), ressoando na inteligência sensível dos ouvintes, e deixando um legado que se tornou modelo de excelência e não só vive nos novos guitarristas, mas influencia músicos de diversos géneros.
A sua arte, verdadeiramente contemporânea de todos os tempos, será para a dança das gerações um movimento perpétuo.