O que é que nasceu primeiro: o amor à montanha ou o amor à música?
O amor à montanha vem de muito longe, da infância. Passava todas as férias na montanha, invernos inteiros a participar em competições de esqui, era esse o meu desporto. Depois comecei a tocar e passei a levar o violoncelo sempre comigo, fosse para a neve ou para zonas mais rochosas. Como tenho uma casa precisamente a meio de uma pista, quando acabava de tocar punha os esquis, dava duas voltas, e voltava a estudar.
Como é que daí se passa para o festival?
O festival nasceu de uma ideia de Paolo Manfrini, uma grande mente criativa que já tinha criado uma série de festivais na região, de dança, música e teatro. Quando, em 1995, me perguntou: “O que é que achas de fazeres um trilho com o violoncelo e, depois, chegares a um sítio e começares a tocar?”, respondi que não esperava era outra coisa. A partir dali, a minha função no festival foi sempre a de me ocupar da parte da música clássica, envolvendo os artistas e mostrando-lhes que tocar ao ar livre é algo muito natural, que nos ensina tantíssimo.
O que aproxima estes dois universos que são a montanha e a música?
Uma montanha não se conquista, não é nossa quando subimos ao cume. Até podemos chegar lá, mas depois temos de descer e ir embora. Na música acontece o mesmo. Quando acabamos de tocá-la temos de começar do início. Não é porque a tocámos uma vez que fizemos dela algo nosso para sempre.
E soa sempre diferente?
Sim. Na montanha, como na música, temos de saber usar as nossas forças, ouvir o corpo. Não podemos tocar nem ouvir sempre uma música ao máximo, depende de como nos sentimos e quanta estrada já fizemos. Além de que, tal como estas montanhas, é impossível determinar a profundidade da música. Não conseguimos medir quão profunda é uma frase, uma sonata ou uma canção nem determinar até que ponto tocam quem as ouve.
De todos os lugares onde tocou ao longo das 29 edições, qual foi aquele de que mais o tocou?
É difícil dizer um, porque excluem-se automaticamente os outros. Estou muito ligado à primeira alba [concerto ao nascer do Sol] que fizemos, já não me lembro precisamente em que ano. Foi no refúgio Alimonta, localizado no grupo montanhoso de Brenta, a uma cota elevadíssima e encostado à base das paredes de rocha. São centenas de metros, era como se estivéssemos num palco de pedra. O Sol a nascer por detrás dos cumes, iluminando primeiro a ponta das montanhas e descendo, depois, devagarinho, até à base. Parecia um filme.
A questão da acústica é determinante na forma como escolhe os locais dos concertos?
Não procuro sítios por causa da sua acústica, mas locais que possam ser preenchidos. Grandes espaços, como só as Dolomiti sabem criar, para depois pôr lá a música. Ao contrário do que acontece com a reverberação de uma sala de concertos, onde tudo é estudado para que o som regresse, o som aqui não volta, vai. Para os cumes das montanhas, para o fundo dos vales e para quem está a ouvir.
Foi fácil convencer músicos profissionais a abraçarem tal ideia?
Há uns anos era muito mais difícil. Houve músicos muito importantes que, ao chegarem ao local do concerto, apesar de lhes termos explicado o conceito, perguntaram onde é que era o camarim. Mas depois perceberam. Aliás, muitos músicos apaixonaram-se pela experiência e regressaram diversas vezes.
Tento sempre imaginar qual seria o silêncio que os compositores tinham na sua mente enquanto escreviam estes dons que ofereceram à Humanidade
É muito diferente tocar uma mesma obra no meio das montanhas e numa sala de concertos?
Sim. Não só tocar, mas sobretudo ouvir. Na montanha temos todos os ouvidos tapados por causa da pressão, portanto o que ouvimos não é realmente a música que está a ser tocada. Se a gravarmos e a ouvirmos em cotas mais baixas veremos que é muito mais rica de harmónicos, que aqui são muito reduzidos. Ou seja, os músicos, nas montanhas, são forçados a procurar algo mais, descobrindo muitas vezes novos sons, coisas às quais nunca teriam chegado de outra forma, porque se contentavam com o que ouviam.
E o público? Foi fácil convencê-lo a caminhar para ouvir música clássica?
Bem, o primeiro ano foi verdadeiramente de pioneiros. Eram cerca de 50 pessoas, muitas delas caminhantes que, por acaso, iam a passar e ficavam a ouvir. A partir do segundo ano já tivemos um enorme sucesso, porém, há algum tempo, alteramos as datas de julho para setembro, porque a afluência turística às Dolomiti cresceu de forma despropositada. Com essa mudança, o público transformou-se subitamente em verdadeiros amantes da natureza e da música.
O silêncio é enfaticamente referido no manifesto do festival. É algo importante para o seu processo de criação e fruição artística?
Tento sempre imaginar qual seria o silêncio que os compositores tinham na sua mente enquanto escreviam estes dons que ofereceram à Humanidade. Se calhar Bethoveen estava sentado numa mesa igual a esta onde estamos nós, rodeado de rumor, mas dentro de si possuía um silêncio de tal ordem que era capaz de dar origem a uma obra prima. Este tipo de silêncio é algo que devemos procurar nestes espaços. Para mim, em particular, as Dolomiti são capazes de criar um universo enorme.
Porquê?
Porque, perante elas, sentimo-nos nada. Nada esse que pode ser entendido como um tipo de silêncio capaz de defender a sua magia e sacralidade e fazer com que não sejamos agressivos para com elas. É que, apesar de mastodônticas, as montanhas são inesperadamente frágeis. Tudo o que fazemos deve ser delicado, respeitoso.
É esse respeito que o festival quer promover?
Sim. Não procuramos o show. Queremos antes interpretar esta fragilidade e encontrar uma linguagem que seja capaz de exprimi-la de alguma maneira.