Circula por aí um teledisco de homenagem a Sérgio Godinho, em que mais de 40 artistas cantam “O Primeiro Dia”. O projeto é da Rádio Comercial, que ironicamente será uma das estações que menos passa as músicas de Sérgio. Os arranjos são de João Só. Já se sabe que iniciativas como esta – uma prenda de aniversário, 78 anos – são sempre bonitas, embora o formato se torne inevitavelmente muito limitado do ponto de vista artístico. O mais impressionante é mesmo a vastidão e heterogenia dos participantes. Incluindo alguns daqueles com os quais até me custa partilhar gostos.
Todavia, não há dúvidas, o alcance das canções de Sérgio Godinho é mesmo dessa extensão toda. Tornou-se transversal, assim como alguns outros grandes, como Chico Buarque ou Zeca Afonso. É ouvido por todas as gerações, credos, etnias, fobias, penteados. Musicalmente o videoclip mostra-nos que a influência de Sérgio Godinho vai do hip-hop ao pop rock, passando pelo fado, o cante, a música ligeira e até mesmo aquela que já vai a meio caminho do pimba. Há admiradores por todos os lados. Sérgio Godinho foi buscar a sua base lírica e musical ao povo, e depois devolveu-a recondicionada e o povo devolveu-lhe simpatia ao longo dos tempos.
Esta introdução sobre um teledisco – que se vê duas ou três vezes e depois cansa – serve para falar de Sérgio Vezes Três, que se ouve uma dezena de vezes e ainda se quer ouvir mais. Trata-se de uma quase coletânea servida em três discos separados: o primeiro com gravações de estúdio, o segundo ao vivo e o terceiro de parcerias e material disperso.
Confesso que, quando o Sérgio me falou primeiro do projeto, convenci-me alegremente que tinha canções novas, pois as canções sempre foram a sua/ nossa seiva e enchi-me de curiosidade para saber que novos trilhos iria ele traçar. Sabendo de antemão que músicos de carreira longa como Sérgio Godinho têm a dificuldade de concorrer com eles próprios. Por mais que se esforcem em criar novos temas, dificilmente os conseguem impor aos êxitos do passado, que, no seu caso, há muito se inscreveram no cancioneiro português.
Este Sérgio vezes Três é, portanto, um disco celebratório, numa altura em que já quase não se fazem discos. Acima de tudo é um pretexto para voltar a ouvir as suas canções.
O primeiro disco é uma coletânea clássica. Há sobretudo um critério de popularidade, chamemos-lhe assim. Isso faz com que a maior parte das canções venha muito lá detrás. Isto embora haja essa capacidade constante de Sérgio Godinho inserir com relativa facilidade novos temas no reportório, sejam canções antigas esquecidas, sejam de álbuns recentes.
A mais popular no Spotify, sempre um bom barómetro: “É Terça-Feira”, a única que ultrapassa, em audições, os dois milhões e setecentos mil, acima de “O Primeiro Dia”, quase nos dois milhões. A surpresa talvez seja o terceiro lugar: “Grão da Mesma Mó”, do último álbum de originais, Nação Valente (2018), com mais de um milhão e duzentas. Claro que isto vale o que vale, pois parte importante dos ouvintes de Sérgio Godinho continua a ouvir discos, fora dos canais de streaming. De qualquer forma, o top 10 do Spotify está neste disco. E a canção mais recente é “O Novo Normal”, tema feito durante a pandemia, retrato dos tempos de cuidados sanitários e amputação social. De resto, a seleção é equilibrada, com temas de diferentes álbuns, com a certeza de que, por mais cuidada que seja a escolha, ficam sempre grandes canções de fora.
Parte das lacunas é colmatada com o disco ao vivo, que vai buscar versões a registos diferentes, raramente repetindo os temas que aparecem na coletânea de estúdio. Sérgio é um animal de palco, conquista o público sem a necessidade de grandes piruetas. Para tal contribui provavelmente a sua experiência de teatro. Tem aquela rara capacidade de falar como o público como quem está num tête-à-tête. Além disso, percebe-se que o conceito de cada série de espetáculos é preparado de forma autónoma e dedicada, quase como quem prepara um disco novo. Daí que nesta coletânea de registo ao vivo se encontrem sonoridades tão diferentes.
O terceiro disco é dedicado a parcerias e material disperso – uma espécie de lados B. Em 2003, ainda nas celebrações dos 30 anos de carreira, a contar a partir de Os Sobreviventes (1972), Sérgio Godinho lanço o álbum O Irmão do Meio, criando novas parcerias com músicos cúmplices portugueses e do mundo lusófono. É provavelmente o melhor álbum de versões da história da música portuguesa. Já nessa altura se percebia e celebrava a sua amplitude: um escritor de canções com uma capacidade rara de estabelecer ligações entre mundos, em termos geográficos e geracionais.
Este terceiro disco serve-se, naturalmente, do tema desse bem conseguido álbum. Mas não é só isso. Inclui, por exemplo, “O Carteiro”, com Rui Veloso, “O Rei Vai Nu”, com Xana, “Faz Parte (O Retorno Das Audácias)” com José Mário Branco e Fausto Bordalo Dias, “Em Dias Consecutivos”, com Bernardo Sassetti, ou “É Tão Bom”, com Ana Bacalhau. Tem também outros temas a solo, dispersos, e agora compilados num disco, incluindo raridades como “Il Primo Giorno”, versão em italiano de “O Primeiro Dia”, cantada pelo próprio Sérgio.
Os três discos dão um retrato muito completo de Sérgio Godinho, desde os tempos da resistência ao regime fascista até aos nossos dias, revelando sempre uma atenção ao mundo contemporâneo, seus caminhos e transformações. Nesse sentido, nunca deixou de ser um cantor de intervenção, ou seja, um artista socialmente atento e engajado. Mas também sempre foi muito mais do que isso. Da sua autoria são algumas das mais belas canções de amor e desamor de língua portuguesa, retratos coloridos de personagens, espelhos emocionais com as quais facilmente nos identificamos.
A este disco só faltam mesmo canções novas. Sabemos que o músico tem dedicado parte do seu tempo a consolidar uma carreira de romancista – um livro novo está anunciado para o início de 2024. Mas pelo caminho já foram anunciadas várias datas de concertos ao vivo. E ouvi-lo ao vivo é ainda melhor do que em disco.