Falamos da correspondência trocada ao longo de 35 anos, entre agosto de 1941 e dezembro de 1975, se bem que em sentido único, já que ficaram por juntar as cartas de Seixas, entre dois dos fundadores do movimento em Portugal, porventura os que nele mais persistiram.
O mais imediato interesse desta epistolografia é assim funcionar como um subsídio para o entendimento do surrealismo entre nós, em especial do grupo “Os Surrealistas”, criado em 1948 e ativo até 1953. Um dos marcos notáveis do livro é desse ponto de vista a 28ª carta (24-11-1953), expedida para Luanda, onde Seixas acabara de chegar, depois dum ciclo de viagens por mar ao serviço da marinha mercante. Que diz? Noticia a morte de António Maria Lisboa.
A carta desfaz dúvidas nunca até hoje esclarecidas, como por exemplo em que momento soube Cesariny da morte do amigo. Por ela se fica a saber que só um dia antes de escrever para Luanda teve Cesariny notícia do falecimento do companheiro – 12 dias após o sucesso. Diz a carta (p. 83): “O António Maria Lisboa morreu ontem – para mim ele morreu ontem, embora tenha partido a 11 deste mês – só ontem tive conhecimento da sua morte”.
O poeta de Ossóptico morreu só, sem ver os amigos que lhe restavam em Lisboa, Luiz Pacheco e Cesariny, com quem andava desavindo nos últimos tempos, o primeiro por causa da edição do manifesto A Afixação Proibida e o segundo por via do peso de morte que o Lisboa sofria. Perto, o que até se lastima, pela incompreensão que manifestarão, só a irmã e o pai, que lhe destruirão o espólio.
Crucial também a carta de Esposende (22-3-1950), relatando o único encontro entre Cesariny e Teixeira de Pascoaes. O passo classifica de notável a conferência que se ouviu em Amarante sobre Guerra Junqueiro – passava então o centenário deste – e dá-nos um retrato do poeta do Marão. Assim (p. 69): “Quanto ao Pascoaes, é um caso de grandeza que o faz sair desta terra para atingir sem dificuldade o ‘espaço finito mas ilimitado’ como ele diz.”
A sua admiração incondicional por Pascoaes, como se vê, começou cedo e nada tem a ver com a angústia do peso da obra de Pessoa sobre a poesia do tempo, que foi a forma como alguns críticos ulteriores quiseram ler a preferência de Cesariny por Pascoaes. Melhor fariam em ler Duplo Passeio (1942) e ver o que por lá fulminava um jovem adepto do contacto onírico.
A correspondência revela ainda aspetos da vida privada do grupo, já que estes dois amigos não guardavam entre si segredos. Pela carta 21ª, expedida de Matosinhos, início de 1950, percebe-se que Carlos Eurico da Costa e Cesariny se apaixonaram, vivendo entre si uma exaltante história de amor. Cesariny tinha 26 anos e Carlos Eurico 21.
Lê-se na carta: “Foi extremamente belo o que entre mim e o Costa se passou na Barca. (…) Ele está agora numa crise grande, em Viana, e precisa de ânimo e notícias tuas (na carta que recebi hoje pede-me que tas peças). (…) Creio que lhe é horroroso viver naquele mundo, depois dos dias de liberdade e amor – grandes – que teve na Barca.” Entende-se o horror – e ainda hoje, em sociedade muito mais aberta, se entende. Alguns anos depois, em 1965, será a vez de Seixas e Carlos Eurico se apaixonarem, o que levará Cesariny a exclamar (28-10-1965): “Vejo também com terror que o Carlos Eurico… Bem não há amante meu que não tenha chorado por ti.”
Entre os anexos que seguem com as cartas, uns poucos poemas e uma ou outra prosa, é obrigatório assinalar “Mensagem e Ilusão do Acontecimento Surrealista”, enviado para Luanda como apêndice da carta de 25 de fevereiro de 1954. O texto, em cinco parágrafos, foi editado em 1959, a abrir o primeiro número da revista Pirâmide, sendo recolhido, sem alteração, em A Intervenção Surrealista (1966).
Ficamos agora a saber que já no início de 1954 o texto existia e que o seu autor, Cesariny, o pretendia aproveitar, se é que não o gizou, no quadro da polémica que a primeira exposição de Seixas em Luanda (1953) suscitou. Teve como destino a imprensa luandina que então se ocupava de surrealismo, mas não chegou à luz do dia. Trata-se duma versão inédita, em 10 parágrafos; tem por isso um valor de novidade e de antecedência genealógica.
Esta correspondência, que cobre 35 anos de vida, é ainda um excelente instrumento para estabelecer um itinerário mental. As primeiras seis cartas de Cesariny cobrem a segunda metade de 1941 – fará Seixas 21 anos em dezembro e acabou Cesariny de fazer 18 – e têm um valor altíssimo para a reconstituição da mentalidade destes dois adolescentes, no período sequente à Exposição do Mundo Português. O que se tira, até pelo conto inédito que acompanha a segunda carta (21 de agosto), é a adesão aos clichés do neorrealismo, adesão esperada, já que o convívio de Cesariny e Lopes Graça abriu, por via da paixão do primeiro pelo piano, em 1941.
O sentido do neorrealismo em Cesariny, e até na geração que o acompanhou na rutura surrealista em 47, é hoje um vazio. Nada dele se sabe. Nas 16 cartas escritas entre 1941 e o estio de 1946 estão preciosos elementos para esclarecer esse primeiro percurso.
Pela correspondência ficamos a saber que Seixas terá deixado Lisboa, ao serviço da marinha mercante, na primavera de 1950 e que se instalou em Luanda no outono de 1953, donde só regressará no verão de 1964. Quer isto dizer que Cesariny e Seixas estiveram sem se ver mais de 14 anos – apesar da vontade do remetente em fazer visita relâmpago a Luanda, que não concretizou. Nesse arco, em que têm lugar as derradeiras acções do grupo “Os Surrealistas”, que fecham em novembro de 53 com a morte de A. M. Lisboa, e se desenvolvem as do grupo do Café Gelo, Cesariny escreve 45 cartas para Luanda.
Ora, em carta de 14 de Janeiro de 1964 informa que está de partida para Paris. Na carta seguinte (8 de abril) está já em Paris, convidando o amigo a juntar-se-lhe. Não se veem há 14 anos. No final da primavera, Seixas regressa a Lisboa. Não é ainda que reencontra Cesariny.
Pela carta de 8 de setembro sabemos que Seixas está na disposição de partir para Paris. Responde-lhe Cesariny: “Quanto tempo pensas estar? Estou alegre como um apaixonado!” Na carta imediata (23 de outubro), escrita cautelosamente em francês, Cesariny está na prisão de alta segurança de Fresnes e o destinatário em Lisboa. Que se passou? Na noite da chegada de Seixas a Paris, Cesariny leva-o a um cinema de encontros e acaba filado pela polícia gaulesa. Os dois, que não se falavam cara a cara há muitos anos, ficam juntos, ironia, umas horas.
Depois de cumprir pena de dois meses, Cesariny desanda para Londres, só regressando a Lisboa em 1966. Do período londrino ficaram 34 epístolas, valiosas para contrastar os poemas de Londres, recolhidos em 1971.
Depois do regresso de Cesariny, a convivência retomou, até de forma intensa, mas foi curta. As quatro cartas finais, entre julho e dezembro de 1975, com cada um deles amuado no seu canto, um na Estrada da Ameixoeira e outro na rua Basílio Teles, são já de rutura – que durará 30 anos. Houve tentativa de reconciliação, mas sem sucesso. O reencontro só se deu três semanas antes da morte de Cesariny, a 7 de novembro de 2006, em exposição conjunta na Perve.
O desentendimento não pode fazer esquecer a atração que soldou estes dois destinos e que levou o remetente numa das cartas de Fresnes a confessar: “J’embrasse tes cheveux blancs et pense à toi comme je l’ai toujours fait: le seul ami qui reste de la grande aventure, le seul toujours présent parmi les morts et les autres”. Comovente, magnética, exaltante, no amor e no ódio, a relação destes dois irmãos!