“A história verdadeira do Sri Lanka é mais horrível do que qualquer filme de terror que eu possa imaginar”, garante, ao JL, Shehan Karunatilaka. E se não fala por experiência própria – nascido em 1975, era criança quando o conflito estalou em 1989 –, afirma-o no final de uma longa pesquisa e depois de uma indagação literária que o levou ao lado mais negro do país. Foi assim que compôs As Sete Luas de Maali Almeida, o romance que lhe valeu, em 2022, o Booker Prize, um dos mais prestigiados prémios da língua inglesa, e a projeção internacional. Já traduzido em vários idiomas, este é um romance sobre um fotógrafo que passou a vida a denunciar os crimes da guerra civil, até ao dia em que é assassinato. Em As Sete Luas de Maali Almeida deixa-nos a sua confissão (escrita depois da morte) e busca por justiça.
Jornal de Letras: Há coisas a aprender com os fantasmas?
Shehan Karunatilaka: Para ser totalmente honesto, nunca vi um fantasma. E tentei. Fui a casas assombradas e a cemitérios, li histórias e escrevi pela noite dentro à espera de qualquer coisa. Às vezes, o vento soprava e eu pensava: será isto? [risos]. Nunca os vi, de facto, mas isso não quer dizer que eles não existam. Trouxe fantasmas para o meu livro porque cresci com eles, não em encontros pessoais, mas em filmes de terror, em contos e romances. E todas as culturas têm as suas histórias de fantasmas. É natural perguntamo-nos o que acontece depois da morte. No romance, o conceito é: e se os mortos pudessem falar? E se falassem as vítimas do Sri Lanka que foram silenciadas, o que diriam? Nesse sentido, sim, temos muito para ouvir e aprender com este tipo de fantasmas.
São os fantasmas uma metáfora da escrita: há coisas que não sabemos mas se as procurarmos, se escavarmos, se escrevermos, podemos chegar até elas?
Sim, sinto muito isso quando estou a escrever. A História do Sri Lanka está bem documentada, incluindo o período colonial, mas há lacunas. E em grandes períodos parece que só dá conta de uma parte da população. Fala-se do heroísmo, mas omitem-se as coisas terríveis que aconteceram. Foi por aí que, enquanto escritor de ficção, entrei, usando a imaginação para preencher os espaço em branco. Há muita gente que acha que não vale a pena falar do passado. Mas é importantíssimo.
Essa vontade de esquecer o passado parece comum a muitos países.
É verdade e está muito presente no sul da Ásia, na Índia, no Paquistão ou no Bangladeche. O massacre da família real do Nepal foi apenas há 20 anos e, no entanto, ninguém fala dele. Fico sempre impressionado quando vou a Berlim e vejo os memoriais sobre o Holocausto. É uma forma de dizer que temos enfrentar isto, lidar com o passado, não o apagar. No Sri Lanka esse esforço não existe.
Em As Sete Luas de Maali Almeida escreve sobre a guerra civil. Que memórias guarda dessa altura?
Quando começou era ainda uma criança e como vivia em Colombo estávamos um pouco protegidos. A guerra era visível pelos soldados, pelos postos de controlo e pelas notícias de assassinatos. Muitos jornalistas desapareceram, vários políticos foram mortos. Também havia explosões. Mas mesmo mais tarde, na minha adolescência, acho que não tinha consciência do que estava a acontecer. O Maaili de Almeida tornou-se uma personagem interessante para mim porque, sendo uma geração e meia mais velho, vai à procura do que não é noticiado, do que se passa no norte e no leste, os grandes focos da guerra civil.
Mas sentiu-se obrigado, como escritor, a escrever sobre a história do seu país e sobre a Guerra Civil? Terão os escritores um dever cívico?
Não. Um escritor deve fazer o que quiser. Escrever um livro durante três ou cinco anos é muito é difícil. Tens de estar completamente envolvido. E a verdade é que podes marcar a tua posição ou fazer uma crítica política sem ser óbvio, ou direto. É, aliás, o que se vê no romance histórico ou na ficção científica que está a emergir na China ou em vários países africanos.
É também isso que explica o embrulho policial do seu romance?
O policial foi o motor deste romance. Quem sabe se no próximo não escrevo uma história de amor ou dentro de qualquer outro género. Quero contar uma boa história e, neste caso, o ambiente histórico e político é o ambiente de um curioso caso policial: o morto e o investigador são a mesma pessoa. Ele que denunciou vários crimes da guerra civil foi assassinado e tem 5 ou 6 suspeitos. E, depois de morto, tem sete luas para descobrir quem foi.