Dedico este texto ao Jorge Cramez, que me introduziu nestes trabalhos há uns anos atrás
“Por exemplo: o argumentista descreve uma conversa entre duas personagens, fornecendo as palavras pronunciadas e algumas indicações de décor; se for mais preciso, acrescenta o detalhe dos gestos ou a postura fisionómica; mas é sempre o realizador que decide, depois, como é que isso é fotografado, se as personagens serão vistas de longe ou se os seus rostos ocuparão o ecrã, que movimentos realizará a câmara, quais as mudanças de plano, etc. Sabemos, porém, que a cena tomará no espírito do espectador sentidos muito diferentes, opostos mesmo, por vezes, conforme a imagem mostrar estas personagens de costas ou de frente, ou cada uma alternativamente ou em sucessão rápida. Pode também acontecer que a câmara mostre outra coisa diferente durante o diálogo, como o décor envolvente: as paredes da sala onde estão, as ruas onde caminham, as ondas que rebentam à sua frente. Pode imaginar-se, ainda, uma cena em que as palavras e os gestos seriam particularmente anódinos e desapareceriam por completo da lembrança do espectador em favor das formas e do movimento da imagem, que teriam, por si, importância, que teriam, por si, uma significação. / É o que faz com que, precisamente, o cinema seja uma arte: ele cria uma realidade com formas. É na sua forma que se deve encontrar o verdadeiro conteúdo. E a mesma coisa para qualquer obra de arte, para o romance, por exemplo.” (Alain Robbe-Grillet, introdução a L’Année Dernière à Marienbad, ciné-roman)
Ninguém escreve um argumento para escrever um argumento. Já quando se escreve um poema ou um romance, escreve-se para escrever um poema ou um romance. A relação distinta ao literário, bem como a não-relação, assentam nisto. Há aqui uma barreira ontológica que é intransponível, e de que um dos fenómenos é, temos de dizer, a actual greve dos argumentistas de televisão e de Hollywood (o lúmpen-escritor, chegámos aí) — fenómeno que, não se explicando directamente por esta separação ontológica (tanto acontecimento se deu, tanta história se sedimentou e esboroou, desde 1896), deriva mesmo assim dela, tem mesmo assim a sua origem nela. Devemos também desde já dizer que, em ambos os casos — escrever um argumento, escrever um poema ou um romance —, nunca se escreve para os leitores; só os editores e livreiros “escrevem” para os leitores (com excepções, temos de pôr), tal como só os distribuidores e exibidores “fazem filmes ou séries” para os espectadores (com excepções também). É uma lição cuja fundamentação rigorosa podemos extrair de Walter Benjamim em alguns dos seus textos, em particular em “A tarefa do tradutor”: “Porque nenhum poema é válido por relação ao leitor, nenhum quadro em relação ao contemplador, nenhuma sinfonia por relação ao auditório”. Pois vemos que tivemos de pôr aspas aqui, em “escrever” e em “fazer filmes”, o que quer dizer que, quer o sentido de escrever, quer o sentido de fazer filmes, se alargam. Este alargamento torna o dissídio sem fim, insanável — entra por aí o petit et grand commerce, e em qualquer um dos campos. Quando falamos em campos, referimo-nos a dois modos de expressão artística (ou sistemas estético-expressivos), o do cinema e o da literatura. São modos de expressão e criação distintos, não é verdade? Pois é mesmo isso: são modos de expressão e criação distintos.
A escrita de argumento faz inteiramente parte do cinema. Ela não diz respeito ao literário, mas sim ao cinematográfico. A escrita de argumento é cinema. Cabe talvez aqui, com cautela, responder à questão sobre o que é o literário e o cinematográfico, sobre o que é a literatura e o cinema. Com cautela, e muitíssimo resumidamente. André Bazin fala em cinema impuro a propósito de um certo tipo de relação entre o cinema e a literatura, aquilo a que se chama adaptação. E defende essa impureza, porque, claro está, o cinema não passa a ser menos cinema por causa disso. Ele existe de outra maneira.
Quem adapta e quem realiza já está entregue a outro meio de expressão, cujos dados de composição são o som e a imagem, ou os blocos de movimento-duração, como diz Deleuze. As relações são heteromórficas. Se alguns desses filmes não são tão interessantes por si mesmos ou em comparação com a obra que adaptam, isso depende, claro está, do talento e da necessidade de quem adapta (quem escreve o argumento) e de quem realiza (quem faz o filme), e depende também, sempre e muito, tanto ou de alguma maneira, do petit et grand commerce. Mas, se depender da arte, a coisa é interessante, a coisa é diversa, tenhamos essa esperança. (A coisa é, aliás, sempre diversa.) Não é fácil isso, claro, e as pepineiras acumulam-se. É muito kitsch, o lado mundano do cinema.
Por outro lado, as relações entre artes distintas, são sempre, e moderna e contemporaneamente, um processo quase que espontâneo. Também a canção, por exemplo, está relacionada com a palavra (e a palavra literária), enquanto sentido e enquanto som (e enquanto música); pois o cinema também está relacionado com a palavra, enquanto sentido, enquanto som, enquanto música e enquanto elemento que entra em relação com outros dados de imagem e com outros sons. O cinema é materialmente áudio-visual, a literatura não é. Portanto, um poema, uma canção com esse poema, e um filme com esse poema, e com esse poema e essa canção, são coisas distintíssimas. (Parecendo aqui haver uma espécie de progressão, ela é estritamente material, não valorativa.) A literatura é uma fonte de imagens e de sons e uma fonte de pensamento e de relações — que se concretizam de maneira não-literária, seja na vida, seja no cinema.
No cinema, nos maus casos, pode adaptar-se literatura só porque a obra ou o seu autor são importantes, em algum sentido (petit commerce, pepineira cultural); nos bons casos, porém, adapta-se porque alguém (um argumentista, um cineasta) vê nisso uma necessidade para a criação de um filme, com o desafio inerente. Adapta-se por causa do cinema. Neste sentido, não se pode opor estritamente o literário ao não-literário, dado que este há-de estar numa relação — estreita, vamos dizer, ainda que tensional — com aquele. Deixemos três constituintes da literatura (extraídos de Gilles Deleuze): desapossamento do poder de dizer Eu; função fabuladora que alcança visões, devires, potências; tecer na língua uma espécie de língua estrangeira; escrever enquanto ser, ou para ser, outra coisa distinta de escritor.
Claro está que um argumento não é literatura, mesmo quando é escrito por um escritor — ele não pode mesmo tecer na língua uma língua estrangeira. (Um argumento é cinema. Ele está ligado à tecedura de uma crono-áudio-visão.) Porém, se quem escrever um argumento for escritor, não é difícil conceder que algo do seu ser enquanto escritor, e da sua experiência de escritor, passe para a escrita do argumento. Que algo será este? Um modo próprio, um estilo, o que é bom para quem for sensível a isso, para o realizador, se for o caso; o que é mau também, quando não colhe, ou quando o argumentista se convence que está a fazer literatura. Alguns escritores célebres trabalharam em Hollywood, como William Faulkner, Scott Fitzgerald, Raymond Chandler, outros trabalharão hoje — mas não estiveram nem estão aí a fazer literatura. Outros escritores há que podem desequilibrar um tanto o jogo da escrita, como os dois casos que vamos referir a seguir, e que fizeram filmes, aliás…
Do lado dos cineastas, há casos interessantes, como o de Quentin Tarantino que, aliás, escreve sobretudo para si — é um writer-director. Tarantino é escritor ou não é escritor? Tanto quanto sabemos, não é escritor (de poesia, de romance), mas escreve argumentos e textos sobre filmes. Ora, Tarantino tem um estilo, salientíssimo, nos seus argumentos (nos seus textos sobre filmes também), e isso aproxima-o da literatura, ou melhor do texto dramático (que é literário). Mas os seus argumentos são cinema — foram escritos, e rigorosamente escritos, como argumentos para filmes — fazem parte deles, sempre. (E é interessante que ele diga que o argumento só acaba no final da montagem; a montagem começa no argumento, diz ele também). Mas a literatura vai além do estilo, não esqueçamos também. Para Hiroshima, mon amour, Alain Resnais pediu a Marguerite Duras que não escrevesse um argumento de cinema, mas um argumento como os seus romances. Porquê? Porque Resnais queria a matéria em bruto (da forma da literatura) enquanto alento e fomento da forma do filme.
A literatura não é escrita para filmes. Isto não invalida que os argumentos de Tarantino, em algumas livrarias, estejam na mesma prateleira das peças de teatro, como ele diz, e encantado com isso. Pois estão muito bem aí, compreendemos isso muito bem. Isso quer dizer, também, que, havendo um estilo — e o que for mais —, o leitor comum (esqueçamos agora o realizador) pode tirar prazer (e dor, não esqueçamos o sublime) da leitura de um argumento da mesma maneira que pode tirar prazer (e dor, não esqueçamos o sublime) da leitura de um poema ou de um romance. Mas acreditamos muito que a relação ao filme não se elimina nunca. Mais, trata-se de um dado.
Alain Robbe-Grillet, citado em epígrafe, editou alguns livros, os seus argumentos, a que apôs a categoria de ciné-roman (cine-romance); o primeiro, acima referido, para uma realização de Alain Resnais, e os outros realizados pelo próprio escritor-argumentista-realizador. Como não pode deixar de ser, apesar das advertências do próprio Robbe-Grillet, fica-se na ambiguidade entre uma coisa e outra — num sentido, não é literatura, uma vez que os textos estão numa relação directa com o filme, relação que está na sua origem; mas, por outro lado, é literatura, na medida em que, não só a marca do estilo e do mundo de Robbe-Grillet se salientam, como é por ele feita uma convocação da literatura, e explícita, cremos — por exemplo, em L’Immortelle, respondendo à questão “o que é um cine-romance?”, Robbe-Grillet começa por dizer que “O livro que vamos ler não pretende ser uma obra por si mesma. A obra é o filme, tal como pode ser visto e ouvido num sala de cinema”. Mas mais à frente diz o seguinte: “O livro pode assim conceber-se, para o leitor, enquanto uma precisão que é trazida ao próprio espectáculo, uma análise detalhada de um todo áudio-visual demasiado complexo e demasiado rápido para ser facilmente estudado aquando da projecção. Mas, para aquele que não assistiu ao espectáculo, o cine-romance pode também ler-se como se lê uma partitura de música; a comunicação deve assim passar pela inteligência do leitor, ao passo que a obra se dirige antes de mais à sua sensibilidade imediata, que nada pode verdadeiramente substituir”. (Explicações do mesmo teor são dadas na introdução de Glissements Progressifs du Plaisir).
Digamos que, ao pensar e apresentar as razões da publicação do seu texto nestes termos, até certo ponto ironicamente, jogando com os géneros e os meios de expressão, Robbe-Grillet chama assim a atenção para a sua escrita, colocando por isso o seu texto também sobre o domínio do literário. As advertências de Robbe Grillet apelam a um leitor analista, e mediúnico, de certa maneira. A literatura é visada quando, no texto, se trabalham as condições da sua existência. Mas, tendo sido o seu texto determinado pelo cinematográfico, ele não deixa de o ser nunca — Robbe-Grillet tem, evidentemente, consciência disso e, enquanto escritor (enquanto artista), joga com isso. Claro, trata-se aqui de um caso bem diferente do estilo chamado camera-eye, expressão que descreve aspectos mais ou menos superficiais da influência do cinema na literatura.
Longe do caso de Robbe-Grillet, que publicou textos a partir dos quais foram feitos filmes, julgamos, pois, que não deve ser mesmo nada vasta a edição de argumentos dos quais não tenham sido feitos filmes. (Tal como não deve ser assim tão vasta a edição de argumentos de que foram feitos filmes… Citemos a abertura de Jean-Claude Carrière a O Exercício do Argumento: “Por hábito, no final de cada filmagem, é possível encontrar-se os argumentos do filme nos caixotes do lixo do estúdio. Rasgados, amarrotados, sujos, abandonados. São muito raros aqueles que guardam um exemplar, mais raros ainda os que os mandam encadernar ou os colecionam”.)
No caso de realizadores, pode ser que se editem argumentos que não passaram a filme — e realizadores em final de carreira, é o mais provável. Estou a lembrar-me de Manoel de Oliveira e Michelangelo Antonioni — e decididamente, aqui, por virtude de uma melhor aproximação ou compreensão da sua obra cinematográfica, da sua importância enquanto realizadores. E mesmo estes argumentos são cinema, é o que queremos dizer. A todo o momento podem ser aquilo para que foram feitos — como foi o caso de “Angélica”, argumento de Manoel de Oliveira, escrito em 1954, editado por três vezes ao longo do século XX, e que veio a ser filme, O Estranho Caso de Angélica, em 2010. (A relação da obra de Oliveira com a literatura é todo um extenso capítulo à parte.)
Que o argumento seja cinema, isso não quer dizer que o filme exista desde que a escrita esteja concluída, outro ponto aqui a acentuar. (Já vimos aqui a ideia de Tarantino acerca disso.) Nem nos casos mais canónicos, industriais, de mainstream, isso acontece. Mas não são esses casos que agora aqui nos importam. Queremos salientar o seguinte e, se for preciso, gritá-lo bem alto: a) a partir de um argumento, não há só um filme que se pode fazer, há vários filmes possíveis; b) uma das maneiras de filmar um argumento é não filmar o argumento, ou mesmo filmar contra o argumento; c) há filmes que só se podem fazer se não estiverem ligados à lógica, ou mesmo à existência do argumento; d) há filmes que vão construindo o argumento à medida que se vão fazendo.
O que é, pois, um argumento? Muitas coisas, e de muitas maneiras. Às vezes é uma intenção, um inquérito continuado. Viramos a nossa atenção para o mundo, para alguns, e também para nós próprios, se formos capazes, e não só para o mercado. Muitos dos grandes filmes, de sempre, foram feitos assim e, mesmo considerando o caso português, e contemporaneamente, só assim se puderam fazer — “sem” argumento. (Claro está que “sem” quer dizer de outras maneiras.) É por isso que é pernicioso limitar a imaginação do filme a uma forma estrita de construção de argumento — precisamente aquela que é mais habitual treinar-se nas escolas, aquela que, repetidamente, surge nos manuais sobre escrita de argumento, os quais parecem todos tirados uns dos outros, prometendo formar todo e qualquer aspirante com os seus “actos”, os seus “arcos dramáticos” e os seus “paradigmas”, com expedientes “fundados” num Aristóteles de pacotilha — evidentemente não meditado e não colocado em problema, e cremos que, muitas vezes, não lido.
Dizer que o argumento é cinema, implica que o argumento esteja numa linha de devir que é a do filme, a do próprio cinema, isto é, que o argumento esteja tão em aberto quanto o filme. Horror do “conceito” e do “conceptual” que, sendo jargão do marketing e da publicidade desde há muito tempo, começou a introduzir-se no ensino e na produção do filme, não criando senão nados-mortos. Não encerrar o cinema em “conceitos” é absolutamente determinante para um artista — e para o cinema.
Há que reforçar que o argumento não existe só na forma escrita. Quando um cineasta como João César Monteiro (os seus sumptuosos argumentos estão editados pela Livraria Letra Livre) diz que, no limite, prescindiria da câmara para fazer os seus filmes, está com isso a estabelecer uma equivalência entre argumento e filme. Fazer os filmes na cabeça — filmes que são, pois, argumentos. E não se trata de escrever bem ou escrever mal — há todas as vantagens, para quem escreve, em saber escrever — mas, para um escritor, dizer que ele escreve bem é um insulto. E sobre tudo isto queremos dizer que, à parte o trabalho, e com o trabalho, pode dar muito prazer escrever um argumento. Sim. E não há argumentos (obras) sem autores deles — qualquer um o pode dizer, se o pensar e sentir, mas estamos a citar o maior argumentista-argumentista de sempre, Jean-Claude Carrière.