Contar a história de um pintor utilizando uma linguagem também ela fortemente
visual (mas com caraterísticas muito distintas) como é a banda desenhada é sempre
um exercício arriscado. Uma opção é utilizar um traço na BD que evoque o estilo do
pintor, como fez brilhantemente o autor sérvio Gradimir Smudja em “Vincent e Van
Gogh” (2003, edição portuguesa da defunta Witloof). Mas essa estratégia é muito
difícil se a obra tiver caraterísticas tão particulares na sua grandiosa e grotesca
visceralidade, como acontece com o britânico Francis Bacon (1909-1992).
Embora utilize um tipo de figura distorcida (meio cão, meio móvel) muito comum
na obra de Bacon enquanto “narrador” e comentador ocasional, as opções da autora
italiana Cristina Portolano na bela edição “Francis Bacon: The Story of his Life”
(Prestel) são distintas, tanto por interesse narrativo (seria difícil utilizar uma solução
parecida à de Smudja neste caso), como pela própria natureza do universo estilístico
da autora (www.cristinaportolano.com). Neste livro mostra-se, de modo muito claro,
linear e graficamente legível, os passos numa vida de alguém muito particular, que
conduziram à produção de uma obra que tinha todo um outro léxico do que aquele
usado para a narrar. Portolano refere utilizar uma palete de cores similar à de Bacon,
mas a verdade é que esse ponto de contacto não se torna evidente, precisamente
pela distância gráfica.
O foco de “Francis Bacon: The Story of his Life” é, pois, exatamente o que o
título sugere: como é que um jovem homossexual de boas famílias inglesas ganhou
a visão que lhe permitiu produzir uma obra tão única. E a vida que Portolano retrata
é pelo menos tão fascinante quanto o talento, unindo autor e obra. De jovem prostituto
(ou “kept boy”, se se preferir) cujos dotes o deixaram ter uma vida de lazer (com doses
não negligenciáveis de violência) e exploração constante, à descoberta autodidata de
influências, ao quase obrigatório ciclo inicial de rejeição crítica e dúvida antes de
apoteose final, o que fica é um retrato de determinação, tão torcida quanto as figuras
que retratou. E de cuja distorção grotesca emerge luz.
Talvez haja em Cristina Portolano um tom demasiado respeitoso, um esforço
constante em ser exata e retratar fielmente a vida do pintor, mencionando quem o
ajudou e influenciou, bem como todos os marcos relevantes ao longo do seu percurso
artístico. Algo muito natural, dado o livro ter sido patrocinada pelo “The Estate of
Francis Bacon”. Diga-se, a propósito, que o título original italiano (“Francis Bacon: La
violenza di uma rosa”) é muito mais interessante do que a algo anódina versão
inglesa, certamente pensada para venda em Museus. Mas há duas grandes virtudes
neste livro. Uma, talvez a mais importante, é quase obrigar um leitor que a
desconheça a querer conhecer melhor o trabalho de Francis Bacon. A outra consiste
em, utilizando a vida do pintor, contextualizar a força e extraordinário poder invocativo
que essa obra tem, para quem nela se deixar envolver.
Francis Bacon: The Story of his Life. Argumento e desenhos de Cristina
Portolano. Prestel. 125 pp
Banda Desenhada: Distorções

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