Quando começa a ler sente muitas vezes o impulso de traduzir aquele texto que o inebria e encanta. Em cada tradução que assina Jorge Vaz de Carvalho, 66 anos, procura não só respeitar a melodia da língua de partida, como imaginar como poderia ser um livro caso o autor o tivesse escrito em português. Fê-lo com o Ulisses, de James Joyce, que lhe valeu o Grande Prémio de Tradução Literária APT/SPA 2015, com Ciência Nova, de Giambattista Vico, distinguido com Prémio de Tradução Científica e Técnica FCT/União Latina 2006, e com William Blake, Jane Austen, Virginia Woolf ou Baldassarre Castiglione. E também o faz agora com Dante Alighieri e a sua Divina Comédia, que considera ser uma das grandes obras de todos os tempos.
Um trabalho de vários anos, iniciado ainda na década de 90, durante a sua carreira de destacado cantor lírico em Itália (e em muitos outros pontos do mundo) e que aprofundou nos últimos anos, a partir do momento em que, livre da gestão de projetos na área da cultura e da música (foi diretor da Orquestra Nacional do Porto, entre 1999 e 2006, e diretor do Instituto das Artes, entre 2005 e 2007), se tem dedicado à investigação, ao ensino (na Universidade Católica Portuguesa) e justamente à tradução.
Para recriar em português a terza rima da Divina Comédia, e todas as cambiantes do texto de Dante, socorreu-se não só da sua sensibilidade poética (publicou, em 1992, o volume A Lenta Rendição da Luz) como de toda a sua formação musical. E vê esta tradução também como uma defesa da nossa língua. “A Divina Comédia não pode ser traduzida num português qualquer”, defende. “Implica um profundo amor à língua e à cultura portuguesas”.
Jornal de Letras: Traduzir a Divina Comedia é uma viagem tão longa e tortuosa como a narrada por Dante?
Jorge Vaz de Carvalho: Uma tremenda viagem. A Divina Comédia é um texto de exigência máxima, pelas dificuldades que levanta, pela sua extensão e pelo sumo intelectual que contém. Mas isto não quer dizer que o texto seja, por si só, difícil de traduzir. Se estudarmos a história, perceberemos as personagens que ele convoca. Se atendermos ao léxico, através de um estudo filológico, também conseguiremos encontrar equivalentes. Porém, Dante está a escrever uma língua nova, inovadora, que rompe com tudo o que tinha sido feito até então. Em grande parte da Idade Média, por norma, os escritores faziam uma glosa a qualquer autoridade maior, a um grande escritor. Dante, pelo contrário, é completamente original, tal como a linguagem a que recorre. Escreve no vulgar toscano, e não em latim, e enriquece-o com sicilianismos, provencialismos e galicismos, recorrendo ainda a latinismos e a construções latinizantes, a formulações arcaicais e a neologismos.
Ou seja, exige uma investigação constante.
Sim, e essa dimensão é que pode ser considerada difícil. Perceber o que Dante está a fazer em cada momento, com que outros autores está a dialogar, de onde vem o léxico que usa, por que se altera a sintaxe. Tudo isto sabendo que, no fim, tem de se encontrar a rima certa, sem torcer o verso para para obter esse efeito, e ser fiel à melodia e ao timbre do texto. Atender ao que se diz, mas sobretudo ao como é dito. Traduzir a Divina Comédia não é uma corrida de 100 metros, são várias maratonas.
Como um cantor de ópera, é preciso conhecer todos os instrumentos que compõem a música para depois cantar por cima?
Exatamente. Não se conhece nenhuma versão escrita por Dante, com a sua assinatura. O que temos são textos fixados por diversos escritores que vêm de uma tradição oral. Antes de ser um livro, a Divina Comedia foi memorizada e comentada oralmente. Essa condição implicou seguramente uma grande consciência criativa por parte do autor, no sentido de escrever um texto que seja musical, já que a musicalidade do verso ajudava à memorização.
Como em Homero.
Sem dúvida. Só passámos a fruir o texto escrito a partir da invenção da imprensa por Gutenberg, no século XX, o que de alguma maneira conduziu a uma perda dessa ideia fundamental da musicalidade do verso. Porque a poesia sempre esteve ligada à música. Falamos de poesia lírica porque era acompanhada à lira, na mesma medida em que nos referimos às cantigas de amigo e de amor. Essa dimensão, tão forte na criação de Dante, tem de ser transmitida pelo tradutor. A procura da melodia é inevitável, o que não quer dizer que seja sempre bonita ou delicada. Por vezes é intencionalmente áspera e dura. Para a traduzir, é preciso tocar vários instrumentos.
Parece mesmo uma caminhada pelo Inferno até se chegar ao Paraíso…
Tem essa dimensão, sim, de esforço antes da recompensa, como tem, aliás, a tradução de qualquer grande texto. Mas como digo aos meus alunos, o importante é colocarmo-nos em cena. Não se traduz de fora, numa atitude exterior ou afastada do texto. É preciso mergulhar, perceber por que determinada personagem diz o que diz, o que isso implica do ponto de vista psicológico e que relação estabelece com as demais personagens. É fundamental que o tradutor percorra, quase corporalmente, as várias etapas que o Dante peregrino, autor e personagem, vai superando.
A forte visualidade do texto é uma ajuda nessa caminhada que se propõe ao tradutor?
Sim, claro. A Divina Comédia é, de facto, um texto fortemente narrativo e visual, também porque não se dirigia apenas aos eruditos, mas também a um público alargado, como se Dante quisesse pôr um Giotto em verso, se assim se pode dizer. Com isso torna-se mais fácil visualizar as personagens mitológicas, os monstros, as figuras históricas, as situações em que se encontra, as paisagens tão bem descritas.
Na criação fala-se muito da ideia de não perder uma certa eletricidade, uma tensão, o tom do texto. Em que medida se coloca esse desafio na tradução?
A toda a hora. Aliás, concebo a tradução como Jorge de Sena a afirmava: o tradutor deve escrever o texto que o escritor escreveria se o fizesse na nossa língua. Somos apenas humildes intermediários entre o autor e o leitor. A missão do tradutor é não existir, deixar transparecer na sua língua um texto escrito noutra.
Lemos esta tradução e temos o impulso de a ler em voz alta. Teve esse cuidado?
É um ponto fulcral. Não se pode traduzir a Divina Comédia sem a ouvir no original. Uma experiência importante para esta tradução, e para o meu conhecimento do texto, foi ouvir a leitura integral feita por grandes figuras do teatro italiano, como Vittorio Gassman ou Roberto Benigni.
Pelo seu passado como músico, a sua passagem por itália, anteriores traduções e percurso académico, parece que tudo na sua vida convergiu para esta tradução…
Não sei se é destino [risos]. É verdade que comecei a aprender piano aos quatro anos, ainda antes de saber ler e escrever. A minha consciência musical não pode deixar de ser bastante cuidada. Isso ajuda-me imenso enquanto tradutor, ainda mais neste tipo de texto. Mas será que tudo existiu para que eu fizesse esta tradução do Dante? Isso seria admitir que a minha tradução é o auge do meu percurso existencial. Espero que seja apenas um dos muitos. Ainda tenho muito para fazer [risos].
Qual a sua relação de leitor com Dante?
Dante é um poeta de todos os dias, nunca chega a ir para a estante. Tenho de recorrer à sua obra regularmente, de lembrar determinado episódio, reler este ou aquele canto. Poder traduzi-lo é um privilégio. De resto, como não faço tradução profissional, posso escolher os autores que mais impacto têm em mim. E, por isso, tenho tido a sorte de traduzir os grandes nomes, não só da Literatura (James Joyce, Virginia Woolf ou Jane Austen), como grandes mestres do pensamento (Giambattista Vico ou Baldassarre Castiglione). A tradução é, para mim, uma forma de aprendizagem profunda, de amadurecimento do conhecimento. Leio Dante desde a minha juventude, mas nunca o li com o detalhe a que fui agora obrigado.
Quando decidiu traduzir a Divina Comédia?
Quando fui viver para Itália, no início dos anos 90. Antes nunca estudara italiano institucionalmente. Entrei, em 1973, em Românicas, na Universidade de Lisboa, área na qual a cultura italiana estava (e continua a estar) absolutamente esquecida, o que não faz muito sentido. Não se pode compreender Camões sem ir a Petrarca, ou Francisco Manuel de Melo sem Castiglione.
Mas já foi com vontade de a traduzir?
Conhecia, na altura, a edição da Sá da Costa, que li na minha adolescência, e as versões de Fernanda Botelho (Inferno), Sophia (Purgatório) e Armindo Rodrigues (Paraíso), que saíram na Minotauro. Olhava para essa edições e pensava: o Dante escreveu em terza rima, a prosa não pode ser uma opção. Não sei se já pensava em concreto numa tradução em rima, mas considerava-a necessária para a cultura portuguesa. Porque a tradução é uma homenagem à língua de partida, mas também à de chegada. A Divina Comédia não pode ser traduzida num português qualquer, implica um profundo amor à língua e à cultura portuguesas. Em Itália, senti necessidade de estudar a fundo a língua italiana e de ler as grandes obras italianas. Comecei no século XX e acabei na Idade Média. Ao voltar a passar por Dante, mas no original, fiquei ainda mais impregnado pela sua poesia.
A tradução foi uma consequência natural?
Sim. Assim que começava a ler um autor novo, e ainda hoje tenho esse impulso, ensaia uma tradução, algumas linhas, páginas inteiras. Foi inevitável fazer o mesmo quando cheguei a Dante. Em 1999, quando voltei a Portugal para tomar conta da Orquestra Sinfónica do Porto, já traduzira o Paraíso todo.
Começou pelo fim. Porquê?
O fascínio pelo Inferno é compreensível. As imagens e os ambientes, as descrições — é tudo muito sedutor. Mas do ponto de vista estético, o Paraíso é a mais perfeita criação de Dante. Quando regressei a Portugal, já iniciara o Inferno, mas os compromissos profissionais que então assumiu deixaram este projeto, e até a minha própria obra poética, para trás. No entanto, senti que descobrira a técnica tradutória que me permitira chegar lá quando tivesse tempo. E esse tempo chegou há uns anos e com o convite da Imprensa Nacional.
E o tempo do poeta? O tradutor anda a esmagar os seus versos?
Sem dúvida. Desde que traduzi Ulisses os convites têm-se sucedido, e para obras dessa envergadura, às quais é difícil dizer que não. No outro dia estava a tentar organizar a minha poesia e deparei-me com 586 poemas, alguns já publicados, a maioria inédita. Mas não tenho tido tempo para os organizar, pois não concebo um livro como uma amálgama de poemas. Na verdade, nem falo muito da minha poesia, pois obra que não está cá fora não existe. Gosto de traduzir as obras dos outros, mas também gostava que um dia alguém traduzisse a minha, caso venha a merecer [risos].