No seu terceiro romance, João Pinto Coelho revisita o período, porventura mais negro, da história da Europa do século XX, trazendo uma nova perspetiva sobre os atos horroríficos perpetrados durante a II Guerra Mundial. Se nos dois romances anteriores (Perguntem a Sarah Gross de 2015 e Os Loucos da Rua Mazur de 2017) a Polónia foi o palco central dos acontecimentos narrados, em Um Tempo a Fingir o olhar desloca-se, convidando-nos a acompanhar o relato das atrocidades cometidas em nome dos ideários nazis em Pitigliano, uma pequena e pitoresca localidade da região italiana da Toscana, onde vivem algumas famílias de judeus, de entre as quais a da protagonista, Annina, a jovem judia italiana, cuja beleza desperta paixões e vinganças.
A efabulação constrói-se num movimento pendular de tempos (os anos da guerra – 1939 a 1943 e o ano de 1952), de espaços (a cidade de Pitigliano e Frigidarium, a mansão “despromovida de palacete a prostíbulo” (p. 254) com uma breve passagem por Roma), de vozes (a de Annina e a do seu irmão Ulisse). O discurso especular afirma-se desde as primeiras páginas da narrativa, cabendo primeiro a Annina a função de narradora, a que se segue a visão de Ulisse.
É igualmente nas páginas dos dois primeiros capítulos que se define a relação que as duas vozes entre si estabelecem. Ao longo relato intimista e afetivo de Annima, que num discurso autobiográfico percorre a sua existência a partir do dia em que Peppino, o artista itinerante que do lixo dos outros cria arte, chega à cidade, contrapõem-se as parcas, mas incisivas intervenções de Ulisse. No primeiro momento em que toma a palavra enuncia sem rodeios o propósito que o move: “Li tudo o que Annina vos escreveu. (…) E agora que me presto a traduzi-las [as mentiras], começo exatamente por onde Annina começou e confirmo…” (p. 17).
Esta entrada de Ulisse na efabulação levanta várias e importantes questões, antes de mais devido à convocação de uma terceira entidade, designada pelo pronome “vos”, cuja identidade nunca será claramente revelada, criando desse modo um vazio de significado que deixa a cada um dos leitores a liberdade de o preencher, nele se incluindo. Mas a principal singularidade deste narrador reside no papel diegético que decide assumir, o de tradutor do pensamento da irmã, no sentido que Ricoeur atribuí ao acto de traduzir, entendido como um exercício de interpretação, de memória e de mediação.
Se o discurso de Ulisse se constitui como uma promessa de sentido, de reposição da verdade, a leitura desvendar-nos-á uma atuação marcada por uma intencionalidade desconstrutiva. Ulisses tomará a palavra em sete momentos diferentes, nos seis primeiros para corrigir, precisar o relato feito pela irmã, contrapondo o seu ponto de vista acerca dos acontecimentos e sentimentos retratados, não sem antes nos prevenir dos riscos que corremos ao entrarmos nas palavrasrio de Annina: “Por isso, deixo-vos a sós com ela. / No fim, se me sobrar coragem – e desde já anuncio que será um sacrifício –, talvez volte a este rio para vos estender a mão” (p. 154).
A hipótese concretiza-se na última intervenção, com a qual a narrativa se fecha, que contrariamente às anteriores retoma e prolonga o discurso da irmã deixado em suspenso no capítulo anterior. Saberemos aí que o texto foi abruptamente interrompido pela chegada das tropas nazis, que prendem e deportam a sua autora para um campo de extermínio. Descobriremos sobretudo o papel primordial que a escrita desempenhou na existência de Annina. Ao fixar a sua história nas páginas de cadernos, a jovem encontra um modo de combater a solidão e de não se entregar à morte. A liberdade de manipular os factos que a si própria se outorga dá corpo a uma efabulação que Ulisse designa como um tempo a fingir (expressão onde ecoa o famoso poema de Fernando Pessoa), por isso procura incessantemente reescrever, desconstruindo, a história da irmã.
Parodiando a expressão que antecede a dedicatória deste romance – “Ride to Live, Live to Ride” –, podemos dizer que esta é a história de uma jovem que escreve para viver e vive para escrever. Se para Annina a escrita é libertadora das agruras da vida real e construtora da existência que para si tinha sonhado, a leitura das várias reescritas que na efabulação se encenam é um exercício de pura magia que inquieta, surpreende e prende o leitor desde o primeiro momento, desafiando-o a entrar num tempo em que o fingimento criador é um modo de sobrevivência.