Terá sido azar, circunstâncias da vida, má vontade? Ao fim de quatro anos de investigação, Cláudia Clemente ainda não compreende, e também não aceita, como é que uma poeta como Leonor de Almeida pôde ter caído no esquecimento. Falta de qualidade não terá sido certamente, pois assim que lançou o primeiro livro, Caminhos Frios, em 1947, foi apontada como uma “extraordinária” revelação. Dela disse João Gaspar Simões ser “um dos melhores poetas portugueses.” Jacinto Prado Coelho destacou a sua “personalidade lírica invulgar”. E Artur Portela defendia estar perante “um dos casos mais extraordinários da poesia moderna”. Nos anos 50 do século XX, Leonor de Almeida era, nas palavras de E. M. de Melo e Castro, “um dos quatro caminhos na moderna poesia portuguesa feminina”. O que poderá ter acontecido?
Eram muitas as perguntas para uma escritora, argumentista e realizadora. Mas Cláudia Clemente não recusou o desafio. Tatuagens de Luz é a sua tentativa de descodificar o mistério que rodeia Leonor de Almeida e quebrar esse silêncio à volta da sua obra. Juntamente com Na Curva Escura dos Cardos do Tempo, a poesia reunida que a Ponto de Fuga acaba de lançar, pode ser o pretexto certo para redescobrir uma autora surpreendente. A Câmara Municipal do Porto em boa hora decidiu homenageá-la na última edição da sua Feira do Livro, que decorreu nos Jardins do Palácio de Cristal no final do passado mês de agosto e início de setembro.
Cláudia Clemente também teve um motivo pessoal. Leonor de Almeida conhecia a sua avó, com quem manteve uma relação de amizade durante vários anos. E havia uma pintura na parede… Aliás, tudo começou com esse quadro surrealista de João Moniz Pereira, de 1949, que esteve primeiro na casa dos seus avós, depois na dos seus pais e que hoje tem na sala. Durante muitos anos, ao falar de livros e projetos, a sua mãe dizia-lhe que devia escrever sobre aquele quadro e sobre quem o vendera aos avós. Quando a mãe morreu, e incapaz de aceitar essa lei da vida, Cláudia Clemente viu nessa sugestão uma forma de prolongar o diálogo materno, a conversa ininterrupta que mantinha com a sua “confidente e amiga maior, a primeira pessoa a quem ligava de manhã e a última de quem [se] despedia à noite”. O mistério, a ligação afetiva, o enigma – estava preparada para uma grande viagem. A surpresa, ainda assim, foi enorme.
Mas por onde começar? Na Internet apenas encontrava quatro poemas e uma fotografia. Nas livrarias, era impossível adquirir os quatro livros que Leonor de Almeida publicara, Luz do Fim, de 1950, Rapto, de 1953, e Terceira Asa, de 1960, que se seguiram à já referida estreia de 1947, Caminhos Frios. Havia, é certo, a participação na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica organizada por Natália Correia, em 1965, na qual encontrou algumas informações, mas pouco mais. Tatuagens de Luz, uma edição da Documenta, relata todos os passos da investigação que Cláudia Clemente fez até se aproximar de um retrato mais completo. Porque nada se revelou simples na vida da poeta, desde o nascimento até às circunstâncias da morte. Datas erradas ou propositadamente alteradas, nomes falsos e até o uso de uma peruca – de tudo encontrou ao longo do caminho que a levou a conservatórias, arquivos da PIDE, bibliotecas e outros centros de documentação.
Descobriu assim que Leonor de Almeida nasceu, no Porto, a 25 de Abril de 1909, e não em 1915, como aparecia na antologia de Natália Correia, nem em 1912, como diz o verbete biográfico que veio a descobrir na Associação dos Jornalistas e Homem de Letras do Porto, de que foi sócia. O que aqui se esclareceu num par de linhas, levou-a meses a apurar e várias incursões à Conservatória do Registo Civil. Aos poucos, impunha-se uma sensação: a de um manto de dúvida, algumas vezes criado pela própria poeta, a cobrir a sua verdadeira identidade, o que descobertas posteriores confirmariam.
Surgiram então informações sobre o primeiro casamento com Júlio Magno, médico com obra literária e ensaísta – que a PIDE dizia membro do Movimento de Unidade Democrática (MUD) e do Partido Comunista Português -, com quem teve o seu único filho. E um divórcio pouco usual para a época, em 1936, seis anos depois do nó. Novo casamento só em 1951, com o poeta, romancista, ensaísta e tradutor Alexandre Pinheiro Torres, com quem viveria até 1961.
Nessa altura, Leonor de Almeida já era conhecida do meio literário, com livros muito bem recebidos, como se viu. Era também senhora do seu sustento, contrastando com a apologia da guardiã do lar que antes e durante o Estado Novo se fazia na sociedade portuguesa. Frequentou o curso de Enfermeiras-Visitadoras de Higiene da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, atividade que exerceu durante décadas. Mais tarde, nos anos 60, acrescentaria formações na área da cosmética, em Paris, tendo aberto um Instituto de Beleza, de que viveu até ao fim da vida. No Lumiar, em Lisboa, a sua última residência, Leonor de Almeida passou a ser D. Márcia, usando por vezes uma peruca. Marcava assim uma bifurcação na sua vida, aquela que esmagou o percurso literário.
É a partir dos anos 60 que a autora de Caminhos Frios começa a desaparecer. Pela correspondência que foi encontrando, Cláudia Clemente apercebeu-se do impacto que o segundo divórcio teve em Leonor de Almeida, mais litigioso do que o primeiro e seguido de novo casamento do ex-marido. Visitou o filho na Escandinávia, para onde este se mudara, entrevistou o poeta dinamarquês Uffe Erling Harder Hansen para a revista Bandarra, a sua última referência na imprensa, e deu a entender aos amigos alguma instabilidade emocional, que, aliás, a perseguiu constantemente. O resto é silêncio.
O que terá acontecido? Cláudia Clemente descobriu o que se podia descobrir, até as circunstâncias da sua morte – foi encontrada sem vida, na sua casa do Lumiar, um dia depois de ter morrido. Mas só pode avançar hipóteses. A primeira é outra lei da vida. “Quem desaparece é esquecido”, afirma. “Perante o silêncio, mesmo aqueles que a consideraram promissora desviaram a atenção para outros autores. Sem publicar, ficou pelo caminho.” Terá desistido? “Acredito que não”, assegura. “Talvez tenha tido azar, pois revela, numa carta, que perdeu um livro inteiro numa inundação que teve numa cave que alugou no Porto, o que a deve ter deitado muito abaixo. E ao morrer deixou muitos papéis, todos deitado para o lixo pelo senhorio. Nunca saberemos se continuou a escrever”.
Também coloca a possibilidade de, perante um divórcio, o “meio literário, maioritariamente masculino, ter respaldado mais Alexandre Pinheiro Torres.” Entre marido e mulher, como se sabe, nunca se deve meter a colher, a não ser nos casos previstos na lei, mas Cláudia Clemente lembra que Egito Gonçalves, admirador da poesia de Leonor de Almeida, pediu a Pinheiro Torres, já a viver em Cardiff, no País de Gales, que organizasse uma antologia de poemas a partir dos quatro livros da ex-mulher. O livro nunca foi publicado. “Teria sido uma excelente oportunidade para recuperar o seu nome, nos anos 80, já depois da sua morte, em 1983, quebrando o silêncio que se abateu sobre a sua obra. Infelizmente não aconteceu.”
Abre-se agora uma nova oportunidade para descobrir uma poesia inclassificável, que ainda hoje desafia os especialistas. “Não há exatamente uma inscrição em termos de movimentos ou tendências na poesia de Leonor de Almeida”, afirma Ana Luísa Amaral no prefácio à edição da poesia reunida da Ponto de Fuga. “Partilhando muitas vezes das preocupações neorrealistas, a estética do neorrealismo não lhe é traço dominante. O mesmo se pode dizer da poética surrealista que percorre muita da sua obra, mas de forma esparsa. Ou do presencismo, que, podendo detetar-se nos seus poemas de carácter mais intimista, logo é desfeito pela presença em simultâneo de tendência outras, como o simbolismo. Por vezes, à maneira de Florbela Espanca, Leonor de Almeida escreve sonetos. Mas são raros.” Nestes versos, Cláudia Clemente encontra “muitas camadas” e “referências”, a par de uma enorme sensualidade, como Natália Correia já sublinhava em 1965. “Leonor de Almeida é essencialmente uma poetisa erótica, mesmo quando o amor não está diretamente em causa. A sua linguagem exprime calidamente uma visão panerótica do Universo”, lê-se na nota biográfica da referida antologia de poesia erótica e satírica.
A ter de escolher uma explicação, talvez seja esta. “Pagou o preço por ter escolhido o seu destino e por ter sido completamente independente”, sugere Cláudia Clemente. “Por vezes, estamos tão enterrados na vida, nas contas que é preciso pagar, e ela fala muitas vezes nisso, que a poesia se esvai, os sonhos são ultrapassados pela realidade”.
Mais certa é a convicção de que este livro biográfico pediu para ser escrito, ou melhor, “que todas as forças do universo se reuniram” para a sua concretização. Ao longo de Tatuagens de Luz, contam-se inúmeros e impensáveis “acasos afortunados” que foram decisivos para a criação desta “imagem” da poeta. Quando se deparou com um beco sem saída na investigação, encontrou inesperadamente uma fotografia escondida atrás de outra fotografia, numa moldura que esteve durante anos na sua mesa de cabeceira. Nela descobriu, no verso, um número de telefone de Leonor de Almeida que a sua avó apontara à pressa, provavelmente no primeiro papel que encontrou à mão. Com isso, tinha uma nova pista e tentou encontrar a morada correspondente. Perante a missão quase impossível, pois não aparecia no nome da poeta, tentou a estratégia surrealista e abriu a lista telefónica ao acaso. E resultou. “Ainda me arrepio quando penso nestas coincidências todas”, confessa.
Ficou muito por esclarecer, mas muito também se iluminou, incluindo a história do quadro, que o avô de Cláudia Clemente comprou a Alexandre O’Neill, amigo de Pinheiro Torres. Nos seus planos ainda estão um documentário e uma curta-metragem, mas acredita que cumpriu a promessa que fizera: raptá-la ao esquecimento. Com tantas datas falsas e disfarces, Cláudia Clemente chegou a questionar-se se Leonor de Almeida não terá querido mesmo “desaparecer”. Hoje, acha que não e que deixou indícios suficientes para mostrar que a sua “vida não foi em vão” e que a sua obra merece “um lugar de destaque” nas letras portuguesas.
Para quem lê Tatuagens de Luz talvez fique a sensação de que a poesia de Leonor de Almeida tinha mesmo de ser esquecida para, mais tarde, vir a ser redescoberta com a força, entrega e paixão de Cláudia Clemente.
Leonor de Almeida: Uma poeta raptada ao esquecimento
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2020/10/202009022225-leonor1_v0.1.jpg-698x1080.jpg)
Foi homenageada na última Feira do Livro do Porto e duas obras aí lançadas permitem redescobrir a singularidade de uma autora que assinou quatro volumes de poemas, entre 1947 e 1960, e depois desapareceu. O JL falou com a escritora Cláudia Clemente que foi capaz de romper a cortina de silêncio e mistério que rodeava um dos nomes que marcaram a poesia da década de 50 do século XX