Eterno candidato ao Nobel, é um dos grandes escritores em língua alemã. Mas o autor de A angústia do guarda-redes antes do penalty também se tornou conhecido como argumentista de Wim Wenders, em filmes como As Asas do Desejo e Movimento em Falso. Assim, Peter Handke esteve no Estoril para participar Film Festival, que decorreu de 5 a 14 -e do qual a seguir se faz um balanço crítico -tendo falado ao JL de cinema, literatura, política, cogumelos … e do seu anjo da guarda
A primeira vez que veio a Portugal, Peter Handke percorreu o país, de lés a lés, de mochila às costas. Agora, na sua primeira visita ‘oficial’, queixa-se de estar enclausurado num hotel de cinco estrelas em Cascais. Isto apesar da magnífica vista sobre o oceano. O pretexto foi o EFF, terminado no sábado, onde o escritor esteve a apresentar dois filmes que realizou e outros quantos que escreveu o argumento com e para Wim Wenders. De momento, já não tem asas para o cinema. Dedica-se de corpo e alma à escrita, o país onde decidiu morrer.
JL: É autor de um dos mais belos guiões da história do cinema, As Asas do Desejo. Acredita em anjos?
Peter Handke: Quando escrevi o texto para As Asas do Desejo não acreditava. Mas com a idade passei a acreditar. Acredito em anjos da guarda. Não sei se cada pessoa tem um. Mas sinto que algumas vezes sou protegido por um anjo, que me avisa quando estou a cair. Pede-me que preste atenção a coisas importantes. Ele diz-me: «Abranda, não andes sempre a correr».
Deve ser muito difícil trabalhar com Wim Wenders, num projecto tão pessoal, artístico e filosófico quanto As Asas do Desejo. Como aconteceu?
Na verdade, a ideia não foi minha. Não escrevi o guião propriamente dito, apenas alguns textos, monólogos e situações. Ele adaptou-as ao filme. A história surgiu durante a montagem.
Mas acompanhou todo o processo?
Apenas a parte final. De início, não assisti às filmagens. Estava na Áustria, e o Wim Wenders em Berlim. Eu escrevia diariamente. E enviava sonhos e monólogos pelo correio. Muitos deles não foram utilizados. Depois estive lá, em Berlim, durante a montagem. Insisti que a linguagem devia ser a coluna vertebral. Sem ela o filme não teria funcionado.
Trabalhou com Wim Wenders em outros filmes. Gostaria de o voltar a fazer?
Sim. Mas estamos numa outra fase. O cinema dele já não é a mesma coisa. Tem outras preocupações. A verdade é que, hoje em dia, se tornou mais difícil o financiamento de um filme. E comigo como argumentista provavelmente não conseguiria recolher dinheiro nenhum.
Os seus guiões têm uma forte componente literária. Contudo, é comum pensar-se que os guiões são textos técnicos e frios com o objectivo funcional de proporcionar a realização de um filme. Acha que os guiões podem ser considerados literatura?
É perigoso que um guião se torne literatura. Mas não consigo evitá-lo. Também há demasiada literatura nos guiões de Antonioni. Contudo, ao ver os filmes, apercebemo-nos que esta desaparece. Acho que não é assim tão problemático que o argumento tenha literatura. O realizador pode depois silenciá-la se achar conveniente. Foi o que fez Antonioni e Wim Wenders. Mas Movimento em Falso foi o único guião escrito mesmo para o Wim Wenders. Em A Angústia do Guarda-Redes antes do Penalty ele simplesmente adaptou o meu livro.
Os seus guiões são literários, mas os seus livros tendem a ser cinematográficos. Em quê que ficamos?
É verdade que, por vezes, enquanto escrevo um romance digo a mim próprio: «Imagina-o como se fosse um filme». Tal ajuda-me a afastar-me, a ter outra perspectiva, a ver melhor. Sou o médico de mim próprio.
Quando lhe surge uma ideia, como é que sabe se vai resultar num guião, num romance ou numa peça de teatro?
Sou um escritor, um contador de histórias. Quando estou a escrever sinto-me em casa. Sempre que fiz guiões não me senti em casa, obrigo-me a ser uma outra coisa, não sou um guionista por natureza. Quando estou a escrever prosa, sozinho, distante de tudo, sinto-me a mim próprio, sinto-me um operário. «Um filme de Buñuel revisitado por Wim Wenders», foi assim que L’Espress se referiu a Numa Noite Escura saí da Minha Casa Silenciosa… Não percebo muito bem esse tipo de frases, para mim não faz qualquer sentido. Talvez se refiram ao Buñuel por o livro se passar em Espanha… Mas é a minha história. O Wim Wenders é muito mais psicológico do que eu. Somos o oposto um do outro. Eu sou completamente anti-psicológico. Ele quer explicar as coisas, enquanto eu sou contra as explicações.
Neste livro, tal como em A angústia do guarda-redes antes do penalty, usa o futebol como metáfora. Porquê? É um adepto?
Gosto muito de futebol. Nunca assisto aos jogos sozinho. Vou para os bares e fico a ver os jogos com outras pessoas. A Áustria não tem jogado muito bem, mas como vivo em França, torço também pela selecção francesa.
Porque é que a determinada altura quis realizar os seus próprios filmes. Não se sentia satisfeito com o que faziam dos seus guiões?
Não sei bem porque o fiz. Na altura, em que realizei The Abscence era bastante mais simples para um escritor fazer um filme. Para mim foi mesmo demasiado fácil. Hoje em dia não o faria. Os jovens realizadores precisam de dinheiro para as suas produções, e eu não quero competir com eles. Acho que esses sim, deviam ser apoiados, e não os escritores, como eu. Não seria justo, porque eu não dediquei nem tenciono dedicar a minha vida ao cinema. Para mim foi uma expedição a outro país. Eu era apenas um espectador de cinema. E um escritor transformar-se em realizador é uma espécie de conto de fadas. Esse conto já não dá. O Paul Auster tentou fazer um filme, mas a experiência também resultou mal.
Não ficou contente com o resultado dos filmes que fez?
Fiquei agradecido, mas não contente. Foi uma experiência muito profunda, apercebi-me de que podia trabalhar com outras pessoas, estar atento a tudo, e acreditei que poderia ser assim. Enquanto filmei, senti-me mais real do que enquanto escrevia. Mas quando o filme acabou, apercebi-me da farsa. Aquela não era a minha vida.
É conhecido enquanto romancista e guionista, mas não tanto como poeta e dramaturgo: estas áreas também são importantes para si?
Considero-me um romancista. Comecei a escrever peças de teatro há 40 anos para o meu actual editor, porque ele me avisou de que eu não conseguiria viver apenas da prosa.
Quanto à poesia, deixei de escrever. Quando for mesmo muito velho espero voltar a escrevê-la, muito simples e intensa, como a de Walt Whitman. A poesia é a essência do ser humano, mas, de momento, ainda não estou preparado. Não me sinto suficientemente feliz nem infeliz para isso.
Fez algumas considerações polémicas sobre a ex-Jugoslávia e Milosevic…
Esta é a última pergunta? Todas as entrevistas terminam assim…
Não, por acaso, ainda me sobram algumas… Mas, queria realmente saber qual é a sua perspectiva actual sobre a ex-Jugoslávia…
Eu gostava da Europa no tempo em que havia a Jugoslávia. Não gosto da Europa de hoje. Gostava destes povos unidos em nome de uma terceira via, como então se chamava, mas agora já não existe nenhuma alternativa.
Tal também se aplica ao Muro de Berlim? Acha que a Europa estava melhor antes da Queda do Muro?
A Queda do Muro foi um acontecimento maravilhoso. A minha mãe era eslovena, e eu fui várias vezes à Jugoslávia. Era um país utópico. E depois foi destruído e converteu-se num problema. Mas num bom problema. Um problema de que eu gosto, apesar de ser doloroso.
Acha mesmo que seria possível manter o país depois da morte de Tito?
Claro que sim. Os jovens jugoslavos queriam continuar juntos. Os mais velhos é que se quiseram vingar da II Guerra Mundial. E foram os mais velhos que se tornaram ricos e poderosos, por isso ganharam a toda a linha, na Eslovénia, na Croácia… Mas eu preferia não falar mais de politica.
Então, agora sim, esta é a última pergunta: o que anda a escrever? No que está a trabalhar?
Eu vivo numa grande floresta em França, e esta é altura dos cogumelos. Por isso, o meu trabalho de momento é andar pela floresta a apanhar cogumelos. Claro que também escrevo. Eu gostava de morrer a escrever. A escrita é o meu país. Mas não o quero estar para aqui a aborrecer com os meus projectos.