Com muito humor e mestria, a escritora traz à sua narrativa os paradoxos da empatia, da ficção, da democracia, da crença voluntária, do mentiroso, do placebo, o argumento da flecha, Zenão de Eleia, o episódio do arroz-doce, S. Tomás de Aquino ou a velha questão do ovo e da galinha, entre outros dilemas e falácias. Um único dilema não se põe ao leitor: continuar ou não a leitura. São duas centenas de páginas irresistíveis do princípio ao fim. Luísa Costa Gomes, 59 anos, iniciou o seu percurso literário nos anos 80 com 13 contos de sobressalto, a que se seguiram O Pequeno Mundo, Vida de Ramón, O Gémeo Diferente, Educação para a Tristeza, Setembro e Outros Contos e A Pirata, entre outras ficções. Também é dramaturga, dramaturgista, guionista, libretista e cronista. Nos últimos tempos para o Teatro do Bairro, assinou a dramaturgia de Actor Imperfeito, a partir dos Sonetos de Shakespeare, e o recente Depois da Revolução.
JL: Como surgiu esta Xerazade dos mil e um paradoxos?
Luísa Costa Gomes: É um projeto tão antigo que se perde na noite dos tempos… Há anos que queria escrever um romance em que as personagens se confrontassem com questões e situações paradoxais… Depois de acabar Ilusão, fui embarcando nele. Mas não queria que passasse por Filosofia para Crianças, nem romance filosófico à Voltaire, nem literatura juvenil, nem literatura senil… Nem que ficasse aí entalado obrigatoriamente numa prateleira, catalogado e acabado… De maneira que fui fazendo como me apeteceu. Mas não deixo de esperar que seja lido dos sete aos noventa e sete, como defendo que tudo deve ser.
“Se é um romance, por definição cabe tudo lá dentro “, diz a certa altura Cláudio: é assim mesmo a arte do romance?
Sim, estamos no capítulo sobre a arrumação e classificação dos livros, que é sempre uma complicação sem fim… O romance, principalmente o romance pré-naturalista do século XVIII, tem este encanto para mim, de ser uma arca de desvios onde tudo cabe, tudo se vive, tudo convive…
O que lhe interessou literariamente no paradoxo e no dilema?
Os paradoxos são momentos em que a Razão brinca com a sua própria habilidade e, paradoxalmente, nessa brincadeira vislumbra os limites da sua habilidade. Depara-se com uma realidade estranha… Uma realidade que é linguagem, por vezes, mas outras não é só linguagem. Os paradoxos fazem-nos parar para pensar, não é? Como o paradoxo da ficção: “Como é possível acreditarmos em coisas que sabemos manifestamente serem inventadas, ou seja, serem mentira? E que é exatamente por sabermos que são falsas que nos deixamos emocionar por elas?”. Uma pessoa pode estar impassível a ver os horrores do telejornal, mas soluçar com as desventuras da telenovela. Quando se formula um paradoxo, são logo despoletadas reflexões, explicações, contra a angústia deste fenómeno definitivamente absurdo.
Não foi pela explicação que teceu a sua narrativa?
Depois de alguma deliberação, decidi não seguir o argumentário clássico de discussão dos paradoxos. Os paradoxos que aparecem no romance muito raramente são discutidos e muito menos “resolvidos”. Os diálogos são em registo humorístico, não propriamente dilucidatório… Deixo aos lógicos a solução, se a tiverem.
O ‘paradoxo da democracia é um dos que aborda: é hoje particularmente pertinente?
Naquele momento do romance fazia sentido. Temos o Constantino num navio de cruzeiro para a Taprobana, um cruzeiro é por definição um estado concentracionário, não há por onde fugir, só de bote… Portanto, é um lugar em que “todos fazem o que todos querem e ninguém faz o que cada um quer”. Quando decidem ir todos jogar críquete, o pobre do Constantino tem de acompanhar, por uma questão de boa-educação, mas vão todos a resmungar, ninguém vai contente… Parece uma qualquer democracia no dia a seguir às eleições… Ninguém queria votar no que votou, mas enfim, é o que há… A democracia parece ser o sistema em que ninguém está 100 % contente, exceto o um por cento que detém o poder… E mesmo esses, não estão contentes, porque a democracia é um obstáculo permanente, é uma canseira.
Dilema e caminho
Foi um livro que lhe exigiu muito trabalho de pesquisa?
Sim, mas isso faz parte, não é grave. O problema não foi o estudo dos paradoxos.
Então?
Foi encontrar no romance uma tradução “situacional” do paradoxo, isso é que demora tempo. A formulação do paradoxo tem de ser de tal forma clara que o problema não se possa desvanecer. Pelo contrário, tem de se transformar num problema com o qual se tem fatalmente de lidar, nem que seja recorrendo ao maravilhoso medieval, como no caso dos paradoxos do tempo. Um paradoxo é a sua formulação, muitas vezes é nitidamente uma questão de linguagem, como no simples “era um homem que toda a gente conhecia mas ninguém sabia quem era”. Mas outras vezes não é uma mera questão de linguagem, como no caso dos conhecidos paradoxos do movimento de Zenão de Eleia. Muitos ao longo da História os têm menosprezado como meros ditos de espírito, mas matemáticos contemporâneos como Joe Mazur, por exemplo, têm o desassombro de os considerar em toda a sua complexidade.
Divertiu-se tanto quanto suspeitamos a escrever esta novela tão pautada por uma profunda ironia?
Sim, e mais ainda. Divertir-se com o pensamento, não é talvez a única “mensagem” que vale a pena passar?
Como lhe ‘aconteceram’ estas personagens, os irmãos Cláudio e Constantino?
Apareceu-me primeiro aquela imagem do Constantino banhado na luz do fim da tarde, com a gaforina loira, o ar inspirado, a pensar sobre o paradoxo da empatia. E o Cláudio, que se chamou muita coisa antes de se chamar Cláudio, apareceu como o que olha para esse irmão admirável, sempre inventivo, e um pouco cansativo.
A sensatez em contraponto?
O Cláudio parece o rapaz do bom senso, mas não é só isso. É o grande amor fraternal que os liga que “resolve” a cisão histórica entre o Sentimento e a Razão.
Os “prazeres principais”, como se diz a dada altura da novela, são mesmo: “olhar sem julgar, ouvir quem fala baixo, sentir sem reserva, voar confiante, amar em segredo, desbravar o seu terreno”?
Haverá muitos mais, sem dúvida. São, neste romance, uma espécie de “filosofia de vida”. Valores a que aspirar…
Há uma certa recorrência na novela da ideia de caminhos, de encontrar o caminho, de o escolher. É nesse dilema que nos achamos hoje?
Penso que é nesse dilema que nos encontramos todos os dias. As questões referentes ao caminho, ao melhor caminho, são as da “orientação” e referem muito livremente um pequeno opúsculo de Kant, que me encantou na juventude, e que se chama O que significa orientar-se no pensamento?
Uma novela rústica que cruza também o caminho da Filosofia?
Não é por acaso que o romance começa no escuro absoluto em que não há qualquer ponto de referência e os miúdos têm de o procurar. Esse é o primeiro paradoxo da investigação, e é claro uma situação imaginária, no sentido em que não há pensamento sem contexto e nunca é possível, para o bem e para o mal, pensar sem pré-conceitos. Trata-se ali de encontrar um fundamento para o caminho. Mas a minha atitude no romance não é filosófica, técnica em sentido estrito, nem isso faria qualquer sentido.
E há uma bifurcação atual da sua escrita entre o romance e o teatro?
Tem sido fértil a sua escrita dramatúrgica: E estimulante?Tem sido muito fértil porque imediatamente “aplicada” ao palco. Isso não é só estimulante, é “profissionalizante”, e um grande privilégio. Aprendo a escrever teatro, ou cinema, para integrar na ficção. Não bifurco, integro, adapto. Escrever é um todo.