Após uma longa e corajosa luta contra três cancros, um dos grandes vultos da literatura e da cultura portuguesa das últimas décadas, Vasco Graça Moura, morreu em Lisboa no passado domingo, 27 – quando esta edição do JL já se encontrava praticamente fechada, até por força da antecipação de prazos resultantes dos feriados de 25 de Abril e 1º de Maio. Assim, limitamo-nos agora a dar a infausta notícia, com alguns elementos essenciais sobre o homem (que até ao fim se manteve a trabalhar no Centro Cultural de Belém, a que presidia) e a obra, recordando algumas das muitas matérias que aqui sobre ele publicamos – e na próxima edição lhe dedicaremos o nosso Tema.
Mestre no ofício da escrita, sobretudo na poesia, ficcionista, ensaísta, tradutor único e internacionalmente distinguido, intelectual raro, defensor da cultura e da língua portuguesa, gestor cultural, articulista, polemista e político, designagamente deputado ao Parlamento Europeu, Vasco Graça Moura (VGM) foi homem de infinitos ofícios e de incansável dedicação. Morreu no passado domingo, 27, aos 72 anos, deixando-nos uma monumental bibliografia. E o seu exemplo.
Lutou contra a doença que o vitimou, acompanhou diariamente o trabalho no CCB, do qual era presidente desde 2012, e não abandonou a escrita, a sua grande paixão e denominador comum de tudo o que fez. “O mundo de Vasco é o mundo todo, com o seu mistério e o seu enigma insondáveis, mas sobretudo um palco, um teatro-mundo de configuração barroca e iluminista ao mesmo tempo, onde tem cumprido o destino singular de um Segismundo por conta própria”, escrevia Eduardo Lourenço num texto de homenagem, publicado no JL 1132, de 19 de fevereiro de 2014. “Do ‘campo da Cultura’, que lhe serviu e serve de batalha, não contra fantasmas como D. Quixote, o cavaleiro Vasco foi acompanhado e combateu, como ninguém mais à sombra de Camões, camonianamente. Não como ele guerreiro de inimigos reais numa época de destino pátrio oscilante, mas epicamente, numa época sem perspetiva futurante sobre si mesma, enquanto nossa e enquanto europeia, mas impávido como o cavaleiro de Dürer, naquela época também perturbada até ao âmago que foi a do mítico Renascimento.” O ensaísta terminava este intímo retrato sublinhando o que de mais fundamental teve VGM: “Os Deuses – ou Deus – concederam-lhe a ele, Vasco, a graça de ser poeta, e um grande poeta. Fazendo isso deram-lhe tudo.”
Nascido a 3 de janeiro de 1942 – às 11 e 50, na Rua Alegre, 65, na freguesia de S. João da Foz do Douro, como precisava na Autobiografia que publicou no JL 881, de 7 de julho de 2004 -, VGM descobriu cedo o gosto pela poesia. “Mal tinha aprendido a escrever e já fazia umas quadras dedicadas à minha mãe, aos meus irmãos e primos”, revelava numa entrevista ao JL. “O meu pai preocupava-se muito com a escrita em bom português, com a leitura de grandes autores e também, na poesia, com a contagem das sílabas, no sistema de António Feliciano de Castilho. Foi uma coisa que me entrou no ouvido muito cedo.” E nunca mais saiu. Camilo, Eça, Walter Scott, Cervantes, Le Sage, Balzac e Sendhal foram as suas “primeiras leituras sérias”, numa atenção à criação alheia que nunca abandonou.
São inúmeras as antologias que organizou ao longo da vida, sem esquecer o seu vastíssimo e premiado percurso de tradutor. Aqui, a lista impressiona ainda mais: Dante, Shakespeare, Petrarca, François Villon, Seamus Heaney, Walter Benjamin e Rilke são alguns dos nomes de uma lista que inclui autores espanhóis, franceses, ingleses e italianos.Estreou-se, em 1963, com o volume de versos Modo mudando, a que se seguiu Semana Inglesa, em 1965, e Quatro Sextinas, em 1973. Antes, depois e durante, desempenhou importantes funções públicas. Uma energia inquebrantável era, de resto, a sua imagens de marca. “Há muito que me habituei a gerir o tempo e estou habituado a trabalhar cinco a seis horas para além do horário normal das pessoas”, confessava noutra entrevista ao JL. “Faço-o correntemente e os ensaios, poemas, artigos já estão integrados no meu quotidiano”. É isso que explica os muitos livros que publicou ao correr dos anos e os cargos que exerceu.
Foi advogado no Porto, entre 1966 e 1983, integrou a primeira comissão administrativa da Câmara Municipal do Porto em outubro de 1974, foi membro do IV e VI governos provisórios e diretor de Programas da RTP. Mais tarde, entre outras funções, foi administrador da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, comissário-Geral da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, comissário de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha de 1992 e diretor do Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. O pouco sono de que dizia precisar enquadram, de facto, as suas atividades. Mas não explicam tudo. A enorme capacidade de (e eficácia no) trabalho, aliada ao talento e a uma cultura vastíssima, era outra das suas armas. E são conhecidas muitas histórias de improvisos e rompantes criativos. Ainda assim, defendia: “A poesia é uma questão de técnica e de melancolia. E não sei o que predomina mais.”
Militante do PPD / PSD durante pouco tempo (1974/75), Vasco Graça Moura não escondeu as suas convicções políticas, nem a sua ideologia. E isso nunca o inibiu de participar em debates com todos os interlocutores, quer à esquerda, quer à direita. “A vida na Cultura é transversal”, defendia em entrevista ao JL. “E como vivemos numa época de grande tolerância e respeito recíproco entre as várias sensibilidades e as várias individualidades que nelas se inserem, é perfeitamente natural que eu aprecie figuras cujo perfil ideológico não coincida com o meu. E que a inversa também seja verdadeira.” Com mais humor, explicava: “Houve casos em que procurei a estridência e a contundência. Mas em geral limitava-me à ironia.”
Muitos foram os seus cavalos de batalha. A Cultura portuguesa, a educação e o Acordo Ortográfico, do qual era um acérrimo opositor. A sua postura nunca foi a da indiferença. De todas as atividades literárias a que se dedicou, a ficção foi a que surgiu mais tarde, em 1987, com o romance Quatro Últimas Canções. Na altura já tinha publicado uma dezena de títulos de poesia, que hoje se encontram reunidos em dois volumes, na Quetzal, e ensaios sobre diversos temas. O último livro que lançou dentro desta área, Discurso Vários Poéticos, com três dezenas de textos sobre escritores de língua portuguesa, é ilustrativo dos seus interesses e do seu papel na divulgação da Literatura Lusófona. Foi este perfil multifacetado que os muitos galardões, portugueses e estrangeiros, distinguiram. Os prémios Pessoa, APE Poesia, APE Romance e Novela, Europa, David Mourão-Ferreira, Vergílio Ferreira ou Nazionale per la Traduzione (este pela tradução de A Divina Comédia, de Dante). E as condecorações Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, Grande oficial da Ordem do Rio Branco (Brasil), Grande oficial da Ordem da Estrela da Solidariedade Italiana ou Cavaleiro da Legião de Honra (França).
Na escrita, como na cidadania, nos livros e no bem público, VGM foi um humanista ao jeito do Renascimento, movido por um único amor: “O meu objetivo naquilo que escrevo, objetivo sempre frustrado mas sempre reiterado, como o esforço de Sísifo, é o de que cada texto seja uma plena declaração de amor à minha língua.” No último ano de vida, amigos e admiradores celebraram essa paixão, homenageando com inteira justiça o seu percurso e a sua obra. Em 2012, no Porto, um colóquio assinalou os 50 anos de vida literária. E já em 2014 a Fundação Calouste Gulbenkian também lhe dedicou um colóquio e foi distinguido com o doutoramento Honoris Causa pela Universidade do Porto.
Colaborador desde os primeiros anos, Vasco Graça Moura foi uma presença constante nas páginas do JL. Assinou artigos e ensaios sobre temas de cultura portuguesa e concedeu várias entrevistas sobre a sua obra e os cargos que exerceu. Além disso, os seus livros foram lidos por diversos críticos, da poesia ao ensaio. A título de exemplo, recorde-se que foi capa nas edições 337, de 20 de dezembro de 1988; 809, de 3 de outubro de 2001; e 1089, de 27 de junho de 2012, e que publicou a sua Autobiografia no n.º 881, de 7 de julho de 2004.
Eis algumas frases de e sobre Vasco Graça Moura.
Comecei a escrever ficção bastante mais tarde do que os outros géneros e isso coincidiu com a utilização do computador, que me tornou mais fácil engendrar histórias e coordenar materiais. Mas há outra razão: a certa altura, na minha própria poesia começavam a surgir pequenas histórias, e senti necessidade de as colocar, de algum modo, em paralelo com outras de fôlego mais longo para as quais a ficção era o meio adequado.
A vida na Cultura é transversal e, como vivemos numa época de grande tolerância e respeito recíproco entre as várias sensibilidades e as várias individualidades que nelas se inserem, é perfeitamente natural que eu aprecie figuras cujo perfil ideológico não coincida com o meu. E que a inversa também seja verdadeira.
Quando traduzo também me assumo como autor, portanto também há naquilo que faço como tradutor uma afirmação pessoal da minha própria individualidade. Sem prejuízo do enorme respeito que procuro ter pelo autor que traduzo.
Entrevista a Rodrigues da Silva no JL 809, de 3 de outubro de 2001
A língua portuguesa, para aqueles que a amam e nela vivem e se exprimem, tem um imenso património acumulado em séculos de literatura, tem uma gramática que hoje em dia é cada vez mais descurada, transporta uma visão do mundo que nos identifica e em que nos reconhecemos, tem valores próprios e possibilidades expressivas extraordinárias.
O meu objetivo naquilo que escrevo, objetivo sempre frustrado mas sempre reiterado, como o esforço de Sísifo, é o de que cada texto seja uma plena declaração de amor à minha língua. Amor intelectual, amor sensual e também amor profundamente oficinal, na luta pela expressão em que sinto necessidade de me realizar como utente qualificado dela. Amar, defender e valorizar a língua portuguesa deve ter para nós uma dimensão ética, uma dimensão estética, uma dimensão cívica e uma dimensão prática. Sem esse amor, visceralmente radicado em nós e inextrincavelmente entrosado nestas quatro perspetivas, não se nos torna possível o conhecimento do mundo
Ensaio de Vasco Graça Moura no JL 910, de 17 de agosto 2005
A poesia é uma questão de técnica e de melancolia. E não sei o que predomina mais.
Mal tinha aprendido a escrever e fazia umas quadras dedicadas à minha mãe, aos meus irmãos e primos. O meu pai preocupava-se muito com a escrita em bom português, com a leitura de grandes autores e também, na poesia, com a contagem das sílabas, no sistema de António Feliciano de Castilho. Foi uma coisa que me entrou no ouvido muito cedo.
Nos meus primeiros anos como poeta tendia mais para os versos livres. De tal modo que cheguei a pensar que o tradutor em mim era uma espécie de heterónimo, alguém que tinha necessidade de rimar, pois só quase traduzi poesia rimada, formas prefixadas É mesmo isto que, de um modo geral, me dá gozo na tradução, determinado tipo de dificuldades técnicas que o tradutor terá de resolver ao incorporar esse texto na sua língua, algo que está entre a partida de xadrez e a luta corpo a corpo…
Houve casos em que procurei a estridência e a contundência. Mas em geral limitava-me à ironia.
Entrevista a José Carlos de Vasconcelos e Maria Leonor Nunes no JL 1089, de 27 de junho de 2012
O mundo de Vasco é o mundo todo, com o seu mistério e o seu enigma insondáveis, mas sobretudo um palco, um teatro-mundo de configuração barroca e iluminista ao mesmo tempo, onde tem cumprido o destino singular de um Segismundo por conta própria
Os Deuses – ou Deus – concederam-lhe a ele, Vasco, a graça de ser poeta, e um grande poeta. Fazendo isso deram-lhe tudo
Eduardo Lourenço no JL 1132, de 19 de fevereiro de 2014
POEMA: Soneto do Amor e da Morte
quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.