Encontramo-nos no Centro Hípico Real Clube de Campo D. Carlos I, em Cascais, onde gosta de se ‘refugiar’ nos poucos tempos livres. “Isto não é o velho no porsche descapotável”, adverte Nuno Lobo Antunes (NLA), para quem montar a cavalo é, antes de mais, a realização de um sonho de criança. Uma paixão proíbida pela mãe – “creio que por medo” -, que hoje, aos 59 anos, vê como um desafio. “Comecei a montar aos 56 e a dar saltos aos 58, o que não é habitual. Ainda agora dei um grande trambolhão… Mas é essa exaltação que me interessa: continuar a aprender, a aperfeiçoar, a enfrentar o medo, a cair e a tentar outra vez”.
No picadeiro, e na vida, é essa exaltação que o move. Também na escrita, como prova Em Nome do Pai, a sua primeira ficção, que acaba de lançar. E por isso seguiu Medicina, porque “há no médico o desejo de ser santo, de ser maior”, como escreveu em Sinto Muito (2008), o livro de crónicas sobre a sua experiência enquanto neuroncologista pediátrico. E talvez também por isso, a palavra “coragem” surja tantas vezes nesta conversa.
Desde logo, a propósito da sua estreia na ficção. “Entramos no mar, primeiro, com a água pelos joelhos, depois pela cintura, e só quando nos sentimos mais seguros, é que arriscamos perder o pé”, afirma o agora neuropediatra, que começou por contar histórias relacionadas com a sua profissão, das quais se considera um “mero relator” – em Sinto Muito, Mal Entendidos (2009) e Vida em Mim (2011) -, antes de nadar para mais longe. Nas águas da ficção.
E não foi tarefa fácil. É que NLA partiu da figura de José, pai de Jesus, para explorar as suas próprias dúvidas e inquietações. “Foi preciso ter alguma coragem para me desventrar, ir para zonas de desconforto, de rutura com aquilo para que é difícil olhar. Como o ciúme”, revela. “Confessar plenamente esse sentimento, que vai contra a inteligência, exigiu também honestidade. E eu quero escrever livros honestos”. Neste, concebe José como símbolo máximo do ciúme, colocando-o em confronto com a ideia de que Deus dá com uma mão para tirar com a outra: “Dá-lhe a possibilidade de existir e de viver ao lado da mulher que ama, mas com um filho que não é seu. Dá-lhe a oportunidade de viver com a sua beleza e, ao mesmo tempo, com a angústia de imaginar que alguém a possa ter tomado”, explica.
O ciúme, como sentimento “inquietante”, provocado pela insegurança e pela dificuldade de viver com as memórias de relações passadas, foi, de resto, o motor para uma interrogação maior. Aquela que o perturbou logo em miúdo, nos tempos da catequese, e que tem persistido ao longo da sua vida: o paradoxo de um Deus “punitivo” que é simultaneamente “exemplo de bondade e tolerância”. “Dá-nos a oportunidade de ter um filho e permite que ele fique doente, sofra, morra. Não há verdadeiramente justiça divina, esse tribunal é remetido para outra existência… E se assim é, por que intervém agora?”.
O SENTIDO DA VIDA
Em Nome do Pai é, com efeito, o contínuo de uma busca, perseguida nos livros anteriores e ao longo das mais de três décadas a exercer Medicina: a procura de um sentido para a vida. Um “mergulho na Humanidade”, diz da sua profissão, que o tem obrigado a viver, todos os dias, e intensamente, com o sofrimento, a angústia, mas também com a esperança e a coragem. De tal modo que cada ano que passa parece corresponder a três, no que toca à “riqueza” da experiência, como recorda acerca dos sete anos que trabalhou nos Estados Unidos. Outro “ato de coragem”.
Aos 40 anos, partiu para Nova Iorque, onde trabalhou em hospitais como o Memorial Hospital for Cancer and Allied Diseases e o Presbyterian Hospital, e lecionou Neurologia e Pediatria na Universidade de Cornell, deixando para trás o lugar de pediatra no Hospital de Santa Maria, cuja Unidade de Neuropediatria coordenava. “Larguei em Lisboa tudo o que um médico com a minha idade poderia desejar”, recorda, sem arrependimentos.
“Nos Estados Unidos, o quotidiano era feito de surpresas, de sentimentos muito fortes, lidava diariamente com a vida e a morte. Foi fundamental, até para o autoconhecimento. Um privilégio”, garante. Só voltou porque se apaixonou. E não resiste a contar uma história: “Ia muitas vezes a um cafézinho de um italiano muito engraçado, que passava a vida a ler o jornal e se estava nas tintas para os clientes. Um dia, fui lá e disse-lhe que me ia embora para Portugal. Ele perguntou porquê, e eu disse: por causa de uma mulher. Ao que ele respondeu: I see, she made you an offer you couldn’t refuse… (‘Estou a ver, ela fez-lhe uma proposta irrecusável’) E foi isso”.
A família é o seu maior orgulho. A mulher, Felipa Garnel, as filhas, Rosa e Ana, e Duarte, o filho mais velho, de outro casamento – para quem tenta ser “uma espécie de Deus do Novo Testamento”, diz, entre risos. Nasceu numa família de forte ligação à Medicina (o pai, João Alfredo Lobo Antunes, era professor catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa), e tem cinco irmãos, todos figuras de renome, com quem confessa ter uma relação “díficil de entender”. “Temos uma grande proximidade porque sorvemos do mesmo chão e, nesse sentido, há uma compreensão funda de cada um de nós, mas, ao mesmo tempo, é uma relação extremamente cerimoniosa”, conta, adiantando que, por isso, não costuma partilhar o que escreve nem com António (Lobo Antunes), o irmão mais conhecido como escritor, nem com João, que além de igualmente médico, neurocirurgião, cientista, é também ensaísta/escritor. Tão pouco os lê.
“Primeiro, leio muito pouca ficção. Depois, a escrita do António, às vezes, irrita-me porque sinto que me ‘rouba’ um património comum. É como se se apropriasse das nossas memórias que, uma vez postas no papel, passam a pertencer-lhe só a ele”, revela. “Além disso, as suas personagens não são, em geral, pessoas com quem eu me desse. É um lado mais sombrio, em que as pessoas desistiram, não sonham. Eu já enfrento isso no meu dia-a-dia… Não quero estar ‘lá’ muito mais tempo”.
Por isso, quando não está no PIN – Progresso Infantil – o Centro para as Perturbações do Desenvolvimento que fundou em Carcavelos, em 2012, depois de vários anos à frente do CADIn -, aproveita para ler, sim, mas sobretudo livros de Ciência. Para escrever. Montar. E para se “rodear de beleza”, diz, trocando um sorriso cúmplice com a filha mais nova, sentada ao seu colo. Que é como quem diz: para estar com a família.