A beleza e a gentileza de sentimentos não têm de seguir a par. Há verdades que, de tão brutais, irradiam uma luz que atrai como um vislumbre do abismo. Casa da Misericórdia, do catalão Joan Margarit (edição bilingue português/catalão com chancela da ovni) tem este género de iridiscência: ganhou o Prémio Nacional de Poesia em Espanha sem cantar amores eufóricos ou luzes redentoras. Fala de coisas irremediáveis como o abandono ou a morte da filha do poeta. Para acontecimentos tão extremos, Margarit encontrou uma expressão sem apelo nem agravo: “Entre os desastres empilhados como sacas,/a vida deixou-me o teu amor./Não importa o silêncio da noite,/e o carro preto que desligou os faróis/e o saxofone que se ouve, baixo, na rádio./o que deve ser impecável é o disparo:/perigoso e certeiro. Como tu na minha vida.”
O título encontrado para o livro remete imediatamente para uma memória agreste:
Casa da Misericórdia, como Margarit esclarece no brilhante epílogo, eram casas de caridade abertas aos órfãos da Guerra Civil de Espanha. O poeta, nascido em pleno conflito, recorda-as como “instituições de uma grande severidade, às vezes à beira da maldade”, mas na qual as viúvas sem recursos procuravam desesperadamente deixar os filhos. Porque “a intempérie era muito mais assustadora”. Posto perante a desmesura de uma dor, Margarit pensou que “um poema talvez sirva para ajudar a suportar a dor e as ausências. Mas não nada mais, e isso sim é triste, muito mais triste é a intempérie sem os versos. A poesia: uma espécie de Casa da Misericórdia.” O que daí resulta não é, todavia, um exercício eufemístico, mas sim um olhar nos olhos de memórias traumáticas como o cancro e posterior morte da filha: “A ausência é uma casa/com aquecedores gelados./Venho de lá. Um longo caminho/até a este amor final./Como o violento Verão/quando em Setembro descansa.” O resultado é um livro brilhante que encontra as palavras do mais íntimo dos silêncios.