Poucos são os relatos autobiográficos que se publicam em Portugal. A veia memorialística parece não correr na pena dos escritores portugueses, muito menos quando centramos a análise nas antigas colónias. Sobre este assunto, de resto, até a ficção se deixa cobrir por um manto de silêncios e tabus. Se exceptuarmos os romances pioneiros de Helder Macedo, António Lobo Antunes, Carlos Vale Ferraz e João de Melo, entre outros, a par de algumas incursões poéticas e teses universitárias, as vivências nas antigas colónias e as guerras de independência que se seguiram não são temas de revisitação frequente. É por isso que o novo livro de Isabela Figueiredo,
Caderno de Memórias Coloniais (Angelus Novus, 176 pp, 15 euros), surge como se de uma novidade se tratasse. Neste seu segundo livro, depois de
Conto é como quem diz, a autora relata a infância passada em Moçambique, onde nasceu, em 1963, e que abandonou em Novembro 1975, meses depois da Independência. E se é verdade que Isabela escreve com a sabedoria e a reflexão que a vida lhe proporcionou, é o olhar da criança de 10 anos que mais se destaca.
À semelhança do romance de Paulo Bandeira Freire,
As Sete Estradinhas de Catete (uma edição da QuidNovi), a intenção não é julgar os colonos, nem os protagonistas desta história. Aqui, como em muitos outros casos, ninguém será absolvido ou condenado. Até porque compreender um tempo, que também foi o seu, é o principal objectivo deste livro. “Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa ou caminhar, apenas. Para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar”, lê-se já perto do final. “Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas-culpadas. Entre as vítimas há carrascos.”
O principal fio condutor de
Caderno de Memórias Coloniais é o seu pai. Nele se concentram todas as emoções que Isabela Figueiredo associa ao mundo colonial. É uma filiação difícil, entre o amor e o ódio, que surge como metáfora da relação entre Portugal e os países africanos de expressão portuguesa. Paira também sobre estes textos curtos, publicados inicialmente no blogue
O Mundo Perfeito, a ideia de traição. Ao regressar à “Metrópole”, numa das muitas vagas de retornados, Isabela Figueiredo fugiu ao destino que lhe estava reservado. A história permitiu-lhe uma vida nova. Um pensamento novo. E reler o passado à luz dessa nova concepção do mundo implicou um corte profundo com o que se viveu.
O que torna esta relação traumática, por vezes mergulhada na culpa, é a constatação que “a partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há-de perseguir-nos sempre”. As suas raízes estão em África, mesmo que hoje viva num “não-lugar”, no vazio que se gerou a partir do momento que entrou no avião que a trouxe para Lisboa. “Os desterrados, como eu, são pessoas que não puderam regressar ao local onde nasceram, que com ele cortaram os vínculos legais, não os afectivos. São indesejados nas terras onde nasceram, porque a sua presença traz más recordações”.
Por tudo isto, Isabela Figueiredo não tem medo das palavras. De contar as coisas como elas eram e como as viu. De desenterrar comportamentos e limpá-los do discurso politicamente correcto. E ninguém escapa ao seu olhar conscientemente inocente, em particular a sua família. Sendo uma autobiografia, não foge às memórias fundadoras da sua personalidade. A descoberta da sexualidade, a sua e a dos seus pais, das discrepâncias sociais, da hipocrisia, das infidelidades, dos preconceitos, dos hábitos e costumes, dos passeios e das esplanadas, do Cinema e da Literatura, essa arma de destruição massiva de irrealidades: “O prazer de ler um livro amortecia humilhações, e era muito maior do que o de brincar sozinha com os bichos ou imaginando guerras com as roseiras. Um livro trazia um mundo diferente dentro do qual eu podia entrar. Um livro era uma terra justa. Porque esse foi o problema. Entre o mundo dos livros e a realidade ia uma colossal distância. Os livros podiam conter a sordidez, malevolência, miséria extrema, mas, a um certo ponto, havia neles uma redenção qualquer. Alguém se revoltava, lutava e morria, ou salvava-se. Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção alguma.”
Redenção é, provavelmente, a palavra-chave deste livro. A de uma filha que se reencontra com o pai. E a de um país que, através deste relato, talvez consiga identificar no passado os traumas do presente.