Não é possível, nem aqui necessário, fazer aqui uma síntese, mesmo que muito reduzida, do percurso de Helena Roseta, desde a sua ligação, ainda estudante, a movimentos católicos e de intervenção progressista, a eleita para a Assembleia Constituinte aos 27 anos, figura destacadíssima do PPD e apoiante de Sá Carneiro (PPD de que saiu para, em 1986, apoiar Mário Soares para Presidente da República), presidente da Câmara de Cascais, deputada primeiro independente, depois eleita nas listas do PS, fundadora do Movimento Intervenção e Cidadania, bastonária da Ordem dos Arquitetos, grande amiga e testamenteira de Natália Correia, etc., etc.
Um currículo de facto raríssimo o desta mulher que há muito se afastou da política partidária e há alguns anos – agora com 77, que ninguém diz … – se afastou da ribalta, mas continua a sua luta de sempre, designadamente pelo direito à habitação – tema do volume agora lançado, com a chancela da Calidoscópio.
Livro em que reproduz algumas das suas imensas intervenções nesse sentido (desde logo na Constituinte) e sintetiza o essencial do que “aprendeu” e hoje sabe e pensa sobre esse tema. Tema também desta conversa, que gostaríamos pudesse ser sobre muito mais…
Tem estado, ultimamente, muito afastada da ribalta, o que a levou a organizar/escrever este livro?
O 25 de Abril convocou a minha geração para a construção da democracia. Pude participar na inscrição do direito à habitação na Constituição. Andei por muitos bairros, conheci gente anónima notável, testei projetos novos, travei muitas lutas, construí solidariedades.
Aos 76 anos decidi arrumar papéis e memórias. Dei comigo a perguntar o que deixo à geração dos meus netos, cujo presente e futuro são tão incertos. O livro foi a forma que encontrei de responder.
De toda essa luta – como cidadã, arquiteta, deputada, autarca – o que considera ter dado mais importante contributo para o objetivo visado?
Talvez o que fique é ter sido “mãe” da Lei de Bases da Habitação, publicada em 2019. Só consegui fazê-lo por ter tido grandes mestres, entre os quais Nuno Portas, Nuno Teotónio Pereira e Gonçalo Ribeiro Telles. As grandes lutas não acabam nunca. Há que receber o testemunho e passá-lo a quem vier a seguir.
Qual o seu balanço e avaliação do que nos últimos anos foi (ou não foi…) feito em Portugal no domínio da habitação?
O direito à habitação ficou na Constituição de 1976, mas o Estado não fez a sua parte. A intervenção pública na habitação nos últimos 50 anos foi mínima, ao contrário do que sucedeu com outros direitos sociais, como a saúde, a educação ou a segurança social, em que o Estado teve e tem um papel decisivo.
A habitação pública é hoje uns escassos 2% do total de habitações em Portugal. No pós 25 de Abril, houve apenas dois grandes programas de habitação pública: em 1974 o SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), de Nuno Portas, uma experiência pioneira e participativa em bairros pobres autoconstruídos, descontinuada dois anos depois; e em 1993 o PER (Programa Especial de Realojamento), de Cavaco Silva, para erradicar os bairros de lata nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
E agora há o Programa de Recuperação e Resiliência (PRP)…
Sim, só agora e à custa de fundos europeus é que se conseguiu um novo investimento público sério em habitação. São 3 mil milhões de euros, entre subvenções e empréstimos, a executar até 2026. Veremos o que resulta e o que acontecerá depois. A habitação é uma necessidade permanente.
Mais do que programas esporádicos e avulsos, precisamos de uma intervenção continuada do Estado, na habitação pública e no mercado imobiliário, que não se autorregula porque a procura não tem limites mas o solo é um bem escasso.
E aí há uma ‘falha’?
Há uma falha estrondosa. Segundo o discurso dominante a culpa é da falta de oferta e é preciso construir mais. A verdade é que há em Portugal muito mais casas do que famílias – 5,4 milhões de fogos para 4,3 milhões de agregados familiares, segundo o censo de 2021.
O que sucede é que muitas destas casas não estão onde as pessoas precisam ou a preços que possam suportar. O próprio mercado imobiliário se alterou muito nestes 50 anos. Com a globalização financeira, mudou de escala e “financeirizou-se”, isto é, a habitação deixou de ser vista como um bem de primeira necessidade para ser um mero produto financeiro, tanto mais apetecível quanto maior a sua valorização no mercado. E a procura, que era local, hoje é global.
Mas há recursos esquecidos. No último censo foram identificados mais de 700 mil fogos vagos (número que não inclui as segundas habitações), cerca de 12% do total de habitações existentes. A esmagadora maioria são fogos privados, no interior e nas grandes cidades. Só em Lisboa foram registados 47 mil. É sintoma de um mercado muito disfuncional, incapaz de mobilizar os recursos existentes para satisfazer uma procura crescente de habitação acessível.
E então, que fazer?
“Não tenhamos medo das palavras. É de especulação desenfreada que se trata, a uma escala financeira sem precedentes”
A situação reclama uma efetiva regulação pública, baseada na Constituição e nos deveres do Estado. É preciso usar todas as ferramentas disponíveis, da promoção pública à intervenção fiscal, da subsidiação à regulação legal.
Cito algumas prioridades: mais transparência nos dados públicos sobre oferta e procura; apoio à procura de habitação para habitar, não para especular; concentração de incentivos no desenvolvimento de um mercado habitacional, público e privado, de custos controlados; recuperação das cooperativas de habitação; reforma da lei das rendas, com maior equilíbrio entre deveres e direitos das partes e maior fiscalização da relação preço/qualidade; reforma fiscal que compatibilize taxas e isenções com as metas da política de habitação; combate à corrupção, ao tráfico de influências e à especulação imobiliária. Não tenhamos medo das palavras. É de especulação desenfreada que se trata, a uma escala financeira sem precedentes.
Este muito grave problema não tem sido ‘tratado’ pelos estudiosos?
Há hoje muito conhecimento académico, em Portugal e no mundo, sobre a crise da habitação e as disfunções do mercado imobiliário. Há figuras legais novas, como o “Termo Territorial Coletivo” (TTC), já em prática no Brasil, que separa direito de uso de direito de propriedade.
É urgente convocar esse conhecimento para as políticas de habitação. Neste como noutros domínios, promessas e boas intenções não chegam. Há muitas medidas que têm efeitos perversos. Apoios à procura, sem regulação, fazem subir os preços. E os estímulos à oferta têm de ser dirigidos ao mercado acessível, não ao segmento de luxo.
No livro sublinha, e logo do título decorre, que a luta pelo direito à habitação é inseparável da luta pela democracia. Porquê?
A democracia é inseparável dos direitos e liberdades que a Constituição consagrou. Quem não tem onde morar, quem paga mais do que pode por casas sem quaisquer condições, quem vive na angústia de ser despejado, quem não consegue ter autonomia habitacional, quem dorme na rua ou num carro, quem tem de abandonar os estudos por não ter “um quarto que seja seu”, é ferido na sua dignidade.
“É necessário combater todas as violações grosseiras do direito à habitação, exigir que o Estado cumpra os seus deveres e mobilizar a opinião e a energia das pessoas para esta causa”
É por isso que é necessário combater todas as violações grosseiras do direito à habitação, exigir que o Estado cumpra os seus deveres e mobilizar a opinião e a energia das pessoas para esta causa. Falhá-la aumenta o sofrimento e sensação de abandono de muitos e o descrédito do próprio regime democrático.
As gerações mais jovens estão a trazer à rua a desigualdade habitacional de que são alvo, organizando manifestações e mobilizando gente de todas as idades. É fundamental ampliar esta luta para recentrar as política públicas na habitação como um direito e não apenas como um mercado.
O que considera mais decisivo e urgente fazer neste momento, para ‘cumprir’ o direito à habitação?
Para além do que já referi, é urgente desfazer alguns mitos. Não, como já disse não faltam casas em Portugal, nem a prioridade é “construir mais”. O país já está construído, há recursos abandonados e há muitíssimas casas sem qualquer uso.
É preciso estudar as causas deste desperdício, reabilitar mais, dar nova vida às habitações existentes, inventando até novas formas de habitar, colaborativas e sustentáveis. Também não é prioritário facilitar cada vez mais terrenos, nomeadamente rurais, para construção nova.
O uso sustentável do solo tem de ser condicionado pela salvaguarda dos equilíbrios ambientais. Os recursos não são infinitos e a natureza vinga-se da sua predação sistemática.
Conte-nos alguma(s) ‘história(s)” do seu percurso de intervenção neste domínio…
O choque das cheias catastróficas de 1967 na região de Lisboa lançou-me na urgência da luta pela habitação. Na Constituinte, vi conceitos chave chegarem de onde menos se esperava.
Quem propôs, por exemplo, inscrever na Constituição que “O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar (…)” foi Adelino Amaro da Costa, do CDS. 36 anos depois, uma ministra desse partido promoveu a maior desregulação do arrendamento urbano, criando uma enorme vaga de despejos. Às vezes sinto-me uma espécie de “Canal História”, por ter presenciado todas estas voltas e reviravoltas.
Mas as histórias que mais me interessam são as dos muitos bairros em que a energia das pessoas me deu força para o sonho de melhorar as suas vidas. Projetos participativos que fazem muito com pouco, como o programa BIP-ZIP, que criei em Lisboa em 2011 e ainda continua, ou o Programa Bairros Saudáveis, que coordenei a nível nacional na pandemia e foi agora suspenso pelo governo, são um manancial de recordações que talvez um dia deixe escritas.
A parte “memorialística” do livro, fora do seu tema específico, é mínima, quando a Helena tem também um longo e rico percurso/experiência de intervenção em múltiplos domínios. Não devia escrever um livro sobre isso?…
O poder é um fenómeno passional, de cujo exercício não se sai incólume. Sófocles escreveu que para saber é preciso “queimar os pés no fogo ardente”. Não tenho saudades desses momentos, nem contas a ajustar com ninguém. A memória que me alimenta é a das lições que aprendi e deixei neste livro. O que gostaria mesmo de fazer era contribuir para a criação de um arquivo de memórias de tantos bairros pobres, alguns já demolidos, onde aprendi o valor da luta ombro a ombro pela dignidade de cada ser humano.