Por vezes sinto-me muito longe de tudo o que se passa lá em Portugal.
Outras vezes leio as notícias e fico com a sensação de que compreendo melhor certas incongruências por estar fora.
O que se passa atualmente na política cultural em Portugal é inenarrável. Como é possível uma Direção-Geral das Artes e uma Câmara Municipal de uma das grandes cidades do país deixarem cair um festival como os Jardins Efémeros?
Eu lembro-me das primeiras edições. Lembro-me de passar o verão a ajudar, nas montagens, na organização dos eventos, e lembro-me de ver a Sandra Oliveira a levantar aquele festival do chão praticamente sozinha. Sozinha, não! Com a comunidade! Sim! Aquela mulher, sozinha, com meia dúzia de tostões, pega nela e vai às lojas, vai aos prédios devolutos, vai aos cafés, vais aos vizinhos, vai à Sé, e pega naquele largo, sim, aquilo é um larguinho, de pedra, e transforma tudo no jardim mais exuberante que já viste!
Ela conhece toda a gente, ela fala com toda a gente, ela envolve toda a gente! Que mais pode uma câmara querer, ou mesmo uma direção nacional das artes querer para o país do que um projeto de grande qualidade artística, envolvido até ao tutano com os habitantes locais de uma cidade? Não percebo!
E transtorna-me! Enchemos cadernos de encargos e bid books a falar da importância da arte e da cultura na qualidade de vida das populações, mas depois não encaramos a perda de um festival como este, com uma década de existência, como algo criminoso para a sociedade!
Porque não se enganem! É um festival que não faz concessões! A Sandra programa a nata da música e da arte sonora do mundo, muitas vezes em exclusivo nacional, mas depois em vez de circunscrever a apresentação a uns quantos privilegiados, num teatro municipal, monta um megapalco espelhado, desenhado por um artista belga que se mudou recentemente para o Satão, no meio de um parque público! E faz um concerto gratuito inacreditável no fim de tarde soalheiro de domingo!
E as pessoas param! E as ruas enchem! E a cidade de Viseu torna-se o centro do universo!
Vem gente de todo o lado que enche os hotéis da região para ver os concertos e para fazer os wokshops que o festival oferece! Ela ainda faz uma feira de produtos biológicos no jardim principal e abre um restaurante pop-up com comida vegana! Os Jardins Efémeros não são só uma série de concertos para as massas! São uma seleção rigorosa da arte mais alternativa a falar, a ser, a dar a experimentar, no centro da cidade, um outro modo de ver a arte e de habitar a cidade!
Diz-me tu que este não é um verdadeiro serviço público! E o mais bonito é que a Sandra faz isto porque adora a sua cidade! A cidade onde nasceu! Não o faz porque o Ministério da Cultura dá mais pontos se te mudares para uma zona de baixa densidade populacional ou se empregares pessoas jovens! Ela não faz isto para os artistas, mas com os artistas e para a cidade onde cresceu! Faz para os que se fascinam com a arte sonora, mas sobretudo para aqueles que nunca ouviram aquelas sonoridades porque nunca tiveram acesso a elas! E podem, quem sabe, apaixonar-se por algo que não conheciam e que a RTP 1 ou a Netflix não lhes pode dar, e tudo, simplesmente, porque tiveram a sorte de conviver com os jardins efémeros todos os anos!
Patrícia, tu não estás bem a ver, a Sandra consegue fazer concertos onde mais ninguém consegue e com o apoio de toda a gente, até do bispo de Viseu! Ela chegou a levar um concerto de um guru de eletrónica para uma casa mortuária! Uma casa mortuária à pinha para ouvir um concerto! O senhor da mortuária acabou a noite a celebrar connosco na rua e a dizer: Nunca tive tantos vivos nesta casa!
Ela também organiza workshops para as escolas da região, cruza a academia com os artistas e com os amadores.
Se não a deixam fazer concertos na rua por razões de saúde pública, ela faz dentro de edifícios espalhados pela cidade, cada concerto para dez pessoas se for preciso. Ela não pode fazer de noite? Ela transforma a praça num lugar chill out para piqueniques durante a tarde!
Ela organiza conferências, residências artísticas, até um ciclo de filmes e de instalações na rua ela já fez e eu vi-a, com os meus próprios olhos, a bater às portas dos vizinhos e a dizer, a cada um: venha lá ver isto que vai gostar, está sempre em casa a ver televisão, ao menos vê uma coisa diferente numa televisão maior!
Ela sabe que em Viseu as pessoas vão muito à missa e ela diz logo: Pois bem, vá à missa, mas já agora vá à igreja ver um concerto que nunca ouviu também… E as pessoas vão! E gostam! E repetem todos os anos!
O ano passado vi a praça da Sé cheia a ouvir a Hatis Noit, uma artista japonesa inacreditável! Não se ouvia ninguém a respirar! Tudo encantado!
Novos, velhos, artistas, pedreiros, jardineiros, lojistas. Até lá estava o senhor do talho, com uma lágrima no canto do olho!
Agora explica-me, Patrícia, como é que um festival destes que já faz parte da identidade de uma cidade (e que a transformou também) pode estar dependente de um concurso para um apoio financeiro e perder por uma centésima nas avaliações finais e por causa disso ser cancelado? Uma centésima?
E ninguém vem em socorro e diz: Alto lá! Este festival tem de existir! Tem de continuar!
O que se passa connosco, Patrícia? Porque queremos fazer arte by the book, a preencher formulários e a respeitar mapas culturais de régua e esquadro sem perceber o impacto que isso tem no terreno? Porque queremos fazer check nas redes sociais dos duzentos eventozinhos em que participamos, todos muito bem apresentadinhos, todos sem público, mas com direito a “tote bag”, a caneta e a porta-chaves a condizer, tudo acessórios que chegam a mais gente do que os próprios eventos? Tudo acessórios que chegam primeiro do que os próprios eventos?
Não sei se ouviste falar, mas o concurso para apoio à Rede Portuguesa de Arte Contemporânea (RPAC), uma coisa nova sobre a qual se fala muito, mas ainda não abriu, todos os credenciados – que ainda aguardam o apoio para 23 – receberam já uma carta registada da Direção-Geral das Artes com o Mer-chan-di-sing!
Vivemos numa época em que é mais importante anunciar o número de “equipamentos” que existem (mesmo que não funcionem) ou promover percentagens de financiados (mesmo que de coisas irrelevantes) do que, de facto, realizar obras que nos encham a alma!
Por vezes desanimo, Patrícia! Vivo aqui, desterrada, e assisto a estas situações à distância e penso que é por isto que não desejo regressar… Mas depois olho para aquela mulher em Viseu, todos os dias a batalhar e penso: Fogo! Nem o Covid 19 a parou, e agora tiram-lhe o tapete?
No ano passado ela tinha um slogan que se podia ler por toda a cidade: Ou somos exatos ou estamos vivos!
É isso! Estamos vivos! Mas custa-me que seja à custa de Sandras e sem a mínima rede estatal!