No seu livro Métamorphoses, recentemente publicado em França,1 o filósofo Emmanuel Coccia situa-se no âmago da crise que atualmente vivemos provocada pela Covid-19. Nele analisa a temática dos vírus, entendendo-os como forças de metamorfoses que circulam livremente, propagando-se de corpo em corpo, de animais para humanos e destes de uns para os outros. Coccia classifica este fenómeno como inevitável e lembra-nos que tal situação se repetiu ao longo dos tempos, provocando profundas mutações. Para ele, cerca de 8% do nosso ADN é de origem viral. E a pandemia, de cujas causas todos sofremos ou iremos sofrer, é mais uma achega para tomarmos consciência de que a nossa civilização depende desses seres invisíveis, responsáveis por inúmeras catástrofes.
Hoje fala-se de ecologia integral, um tema privilegiado pelo Papa Francisco que constantemente o lembra ao longo da sua encíclica Laudato si. Nesse texto desenvolve a ideia de que tudo está em tudo, de que tudo se conecta e interliga. Trata-se de uma tese que nos enche de júbilo pois tomamos consciência de que uma mesma vida habita em todas as criaturas e que, como tal, devemos protegê-las e preservá-las. É uma perspetiva que reforça a pertença de humanos e não humanos a um universo comum, do qual urge cuidar pois é intrinsecamente válido, independentemente da sua utilidade para os nossos interesses imediatos. Podemos dizer que com Francisco a humanidade é encarada pelo seu lado luminoso, cabendo-lhe a tarefa de zelar por uma Natureza benigna, nossa irmã.
Emmanuel Coccia alerta-nos para a fragilidade dos humanos relativamente a catástrofes endémicas e inevitáveis. É mais uma voz a reforçar a falsidade da perspetiva dos homens enquanto donos e senhores da natureza. Com o filósofo fica clara a nossa impotência, tornando-se evidente que também estamos integrados num mundo subterrâneo e ameaçador. Este mundo que inesperadamente se revelou, confirma a nossa extrema fragilidade – devido a um mero vírus fomos obrigados a repensar o nosso lugar no mundo e a alterar um modo de vida que pensávamos adquirido para sempre.
Embora anteriores no tempo a esta pandemia que certamente estavam longe de imaginar, lembro as teses de duas filósofas que podem ser adaptadas à situação que hoje vivemos: Hannah Arendt e Martha Nussbaum. A primeira pela distinção feita entre natureza humana e condição humana; a segunda pelo maneira como abordou o conceito de vulnerabilidade.
Em meados do século passado, na sequência das várias crises sociais, morais e políticas provocadas pela II Guerra Mundial, Hannah Arendt (1906-1975) escreveu um livro filosoficamente marcante, intitulado A Condição Humana.2 Nele sustentou a distinção entre “condição” e “natureza” no que concerne aos seres humanos. Destes, impropriamente se pode dizer que possuem uma natureza. Um homem3 é uma pessoa, um “quem” (who), enquanto as coisas são um “quê” (what). Nenhum ser humano consegue ter uma visão global de si mesmo e das suas potencialidades, algo que só a um Deus caberia. A impossibilidade de definir a natureza humana é uma consequência dessa situação. Por isso Arendt prefere falar de “condição humana”, ou seja, das múltiplas atividades de que somos capazes e que, devido à nossa criatividade, constituem um leque infinito de possíveis atuações. Para melhor explicar a sua tese propõe-nos um exercício de imaginação – a imigração para um planeta diferente após uma catástrofe ocorrida na terra. Nesse caso, os homens deixariam de partilhar a condição humana mas nem por isso abandonariam a natureza que lhes era própria. As condições da nossa vida não explicam o que somos mas mostram-nos como vivemos. (A presente pandemia reforça esta tese pois com ela também verificamos que os seres humanos não partilham todos de uma mesma condição).
Para Arendt há três manifestações definidoras da condição humana: o labor (labour), o trabalho (work), e a ação (action). O labor tem a ver com o corpo e é um fator de aproximação pois biologicamente somos semelhantes. A pandemia veio mostrá-lo, atacando indiscriminadamente ricos e pobres, novos e velhos, cultos e incultos pois todos possuem uma vida biológica. O trabalho é algo que produzimos e pelo qual nos diferenciamos. O homo faber ao criar artefactos revela o seu domínio sobre a terra. Os objetos que fabrica produzem estabilidade e solidez. E dão-lhe confiança pois permitem a construção de um mundo que ultrapassa a natureza. Contudo, é pela ação que acedemos à história e que transformamos o mundo em morada. A ação não tem fim, e a sua imprevisibilidade distingue-se da fabricação. Com ela é sempre possível iniciar algo de novo e de inesperado.
A condição humana significa que os homens são seres condicionados mas também criativos pois são produtores de coisas e de eventos que levam à transformação do seu modus vivendi.” A vida ativa desencadeia novos processos, permite-nos alterar o curso da história e abre-nos uma infinidade de atuações possíveis. Por isso o pensamento arendtiano é uma proposta estimulante para a criação de um mundo post covid.” Nele há que ter presentes os mais fracos e vulneráveis, perante os quais a sociedade tem deveres de cuidado e de compaixão.
É sobre o tema da vulnerabilidade, precisamente, que lembramos o pensamento de Martha Nussbaum (1947), aplicando-o a estes tempos de pandemia. Nussbaum tem dedicado uma particular atenção às emoções, comparando-as a acidentes geológicos (geological upheavals) que um viajante descobre numa paisagem monótona.4 E analisa a importância das mesmas nas nossas escolhas éticas. A vulnerabilidade é uma experiência existencial que as pessoas vivem quando se encontram em determinadas situações. Muitas vezes associa-se a sentimentos de fraqueza, física e psíquica, que impedem o controlo de acontecimentos imprevisíveis, por nós pensados como inevitáveis. Enquanto dependentes de variadíssimas circunstâncias os seres humanos são basicamente vulneráveis. E, como tal, suportam passivamente certas ocorrências, com a consciência dolorosa da sua incompletude, aliada à impossibilidade de as ultrapassarem ou de lhes responderem devidamente.
O medo, a esperança, a angústia, a preocupação com o bem estar, constituem um lote de emoções que todo o ser humano experimenta. Mesmo em estados de grande felicidade a vulnerabilidade mantém-se pois sabemos que são fugazes e dependem de circunstâncias alheias à nossa vontade. O amor que experimentamos por alguém pode tornar-se companheiro da ansiedade pois pensamos na eventualidade da sua perda, ou da deceção se verificamos não ser correspondido. Embora as teses de Nussbaum antecedam em alguns anos a eclosão da presente crise, elas constituem uma resposta atual, suscetível de nos ajudar a melhor compreendê-la e vivê-la.
Certamente que depois desta ameaça perturbadora do curso mundial da história não iremos viver do mesmo modo. E as transformações a realizar dependem de todos e de cada um. Não devemos esperar por ordens superiores para organizar diferentemente a nossa vida. É inevitável (e desejável) que depois deste surto a preocupação com as questões ambientais ocupe um lugar determinante; que a globalização seja repensada com a devida atenção ao valor daquilo que é local; que as críticas às consequências de um capitalismo descontrolado conduzam à substituição deste paradigma. Impõe-se-nos como modelo uma vida mais frugal, com maior atenção à dignidade de todos os seres, humanos e não humanos.
Há que desenvolver a criatividade, buscando modelos diferentes de organização do trabalho, assegurando a todos um ritmo aceitável de produção mas também de lazer. Há que repensar a solidariedade intergeracional de modo a que o bem estar da mente e do corpo sejam contemplados. O que implica reequacionarmos a relação entre os valores da liberdade e da saúde. Numa palavra, urge promover uma cultura da compaixão e da solidariedade em que todos se revejam e que nos ajude a aceitar a vulnerabilidade que presentemente vivemos de um modo dramático. J
1) Emmanuel Coccia, Métamorphoses, Paris, Payot et Rivages, 2020; 2) Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago, The University of Chicago Press, 1958; 3) Respeitando a filósofa, uso o termo homem para designar genericamente o ser humano, não atendendo à distinção homem/mulher, uma temática alheia ao seu pensamento; 4) Martha Nussbaum, Upheavals of Thought, The Intelligence of Emotions, Cambridge, Cambridge University Press, 2001