As descrições de Boccaccio, em Decameron, da peste negra, têm vários pontos em comum com o período que estamos a viver: “A peste ganhou maior força porque dos doentes passava aos sãos que com eles conviviam, de modo nada diferente do que faz o fogo com as coisas secas ou engorduradas que lhe estejam muito próximas. E mais ainda avançou o mal: pois não só falar e conviver com os doentes causava a doença nos sãos ou os levava igualmente à morte, como também as roupas ou quaisquer outras coisas que tivessem sido tocadas ou usadas pelos doentes pareciam transmitir a referida enfermidade a quem as tocasse.”
E ainda que os problemas fossem parecidos, principalmente no que respeita à salubridade, a eficiência das medidas, naturalmente, produz hoje resultados bem diferentes: “De nada havendo servido os saberes e as providências humanas, como a limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade”. No caso moderno, sabemos que, ao contrário da descrição acima, a salubridade e as limitações à circulação têm resultados muito positivos.
Também a erosão da generosidade, da bondade, da empatia e da entreajuda não se verificou, bem pelo contrário (pelo menos até à data) e temos presenciado actos verdadeiramente altruístas, que, pelas diferentes contingências, não era a realidade medieval. Guy de Chauliac, médico do Papa, disse que a peste teria acabado com a caridade. Boccaccio concorda com o veredicto: “E, sem contar que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem.”
O problema económico que se afigura para breve teve também o seu paralelo no passado. Na Encyclopedia of the Black Death, de Joseph P. Byrne, no verbete Demographic and Economic Effects of Plague, lemos que tudo se precipitou num caos generalizado, com fome, inflação e desemprego, e ainda que “os mercados europeus secaram”.
Deixo ainda duas citações de livros publicados recentemente, pouco antes da eclosão da pandemia atual.
“O facto de a gripe suína ser um H1N1, assim como a gripe espanhola, levantou a hipótese de ser esta a Big One e que os governos deveriam esperar uma onda de doenças e mortes semelhantes às de 1918 a 1919. Mas, embora a declaração da OMS tenha provocado o pânico generalizado, o previsto Armagedão viral nunca se materializou. Em vez disso, quando se constatou que a gripe suína mexicana não era mais grave do que uma estirpe sazonal, a OMS foi acusada de ‘fingir’ a pandemia em benefício dos fabricantes de vacinas e de outros interesses. O resultado é o que Susan Sontag chama de ‘um cenário moderno permanente: o apocalipse aproxima-se. . . e não acontece.’ Ao olharmos para os próximos cem anos de surtos de doenças infecciosas, esperemos que esse seja um prognóstico que se mostre verdadeiro.”
Este livro, publicado em 2019 (Mark Honigsbaum, The Pandemic Century – One hundred years of panic, hysteria, and hubris), trata dos problemas de avaliação das pandemias, que por vezes são subestimadas e outras sobrestimadas. A nota de esperança final não se verificou. Podemos não estar a viver o tal o Armagedão viral (como se definiu a gripe espanhola), mas não deixa de ser uma tragédia de proporções assustadoras.
A segunda citação é bastante certeira (Robert G. Webster, Flu Hunter – Unlocking the secrets of a virus, 2018): “A prevenção parece ser a melhor política. O encerramento de todos os LBMs [local based markets] em Hong Kong em 1997 interrompeu imediatamente a propagação do H5N1 aos seres humanos. Após a reabertura dos LBMs, o vírus regressou (…) Do ponto de vista da saúde pública, o encerramento permanente de LBMs em todo o mundo faz sentido. E será tarde demais para fazer isso quando um qualquer vírus da gripe aviária (H2, H5, H7, H9) tiver adquirido a capacidade de se espalhar de humano para humano.”
No meio de tudo isto, a fórmula de Musil impõe-se: os pequeno gestos, se somados, resultam numa grandiosidade incomparavelmente maior do que o maior feito heróico.
Os atos infra-ordinários (para usar a expressão de Perec), os gestos anónimos, paulatinos e invisíveis, os atos que jamais serão notícia, criam a rede necessária à vida. Lavar as mãos em tempos de epidemias é um desses gestos, que na sua invisibilidade pode evitar um cenário catastrófico.
Não partilho do otimismo de alguns quando falam de uma espécie de equilíbrio cósmico, menos poluição, menos consumo, mais consciencialização, que não passa de uma variante da “lição divina”. Infelizmente, acredito que voltaremos à normalidade da voragem anterior, cometendo os mesmo erros: “Por exemplo, o vírus Ébola pode ser um dos mais mortais patogénicos conhecidos, mas é somente quando as florestas tropicais são degradadas por desmatamento, desalojando os morcegos nos quais se presume que o vírus reside entre epidemias, ou quando as pessoas caçam chimpanzés infetados com o vírus para os levar à mesa, o Ébola corre o risco de se espalhar entre os seres humanos.” (Mark Honigsbaum, The Pandemic Century)
Kurt Vonnegut, em Breakfast for Champions, depois de descrever o processo da fermentação alcoólica como resultado da ingestão de açúcar por leveduras, que excretam esse açúcar como álcool, acabando por “se matar ao destruir o seu ambiente com a própria merda”, conta uma história “que consistia no diálogo entre dois destes organismos. Discutiam os possíveis sentidos da vida enquanto comiam açúcar e sufocavam nos seus próprios excrementos. Por causa da sua inteligência limitada, nunca chegaram a perceber que estavam a fazer champanhe.”
É uma trágico-cómica descrição da humanidade, com uma nota positiva no final (em relação à voragem e aos excrementos, não tenho dúvidas de como é certeira, mas sou cético em relação ao consolador otimismo do champanhe). Tenho a certeza de que, no final, mesmo no melhor dos cenários ainda possíveis, não teremos qualquer motivo para abrir um champanhe.J
O princípio de Musil e a lavagem das mãos
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