Durante muito tempo pensei que tinha vindo a ser professor por uma sucessão de acasos que têm salpicado a minha caminhada, uma vez que esta profissão não fazia inicialmente parte do meu projeto de vida. Hoje já não penso assim. Acredito mais que os acasos foram uma multiplicidade de oportunidades aproveitadas, através de decisões condicionadas pelo caldo de cultura em que emergi e me desenvolvi como pessoa.
Nasci em 1950, numa família de professores, jornalistas, dirigentes e militares de diferentes quadrantes ideológicos mas todos com forte empenhamento cívico. Esta circunstância, associada aos seis anos da adolescência no Colégio Militar, levou-me desde cedo a observar atentamente os mais velhos e a interpretar os papéis sociais que me cabiam como oportunidades de poder servir (era o lema do Colégio) sem me servir. A este propósito, lembro-me sempre do meu pai afirmar que, mais importante que ser crente ou ateu, de esquerda ou de direita, era ser vertebrado ou invertebrado.
Tenho memórias familiares ciosamente mantidas e transmitidas pelos mais velhos, e episódios que marcaram a fogo a imagem que desde sempre construí sobre o que é ser professor e sobre a responsabilidade social da profissão. Em matéria de memórias lembro-me, por exemplo, da minha avó Palmira, referir-se à competência dos seus pais, ambos professores primários em Sintra, e ao seu orgulho ao repetir os dizeres inscritos na lápide que os ex-alunos do pai haviam colocado na parede da escola primária (ainda lá está, ao lado do edifício da Câmara Municipal, hoje transformado em Loja do Cidadão): “Homenagem a António Joaquim das Neves: ao mestre que viveu ensinando, ao homem que ensinou vivendo”.
O ensino continuou ligado ao ADN familiar nas gerações seguintes: o meu avô Bruno, apesar de militar de carreira, foi professor 12 anos no Instituto de Odivelas; o meu pai, que era economista, da sua sinuosa trajetória pessoal, valorizou sempre as suas experiências docentes e os meus irmãos foram ambos formadores nas suas profissões, tendo um deles acabado por se doutorar já com 60 anos e lecionado no ensino superior, até nos deixar em 2003.
Foi esse irmão que me introduziu nas lides da formação quando, em 1976, fui seu formando no curso de instrutores de socorrismo da ESO/CVP. As lições que dele recebi em matéria de Pedagogia para cursos intensivos (hoje Formação de formadores) foram-me essenciais, quer para o meu desempenho como formador quer, anos depois, como professor. Com ele aprendi a planear cuidadosamente as aulas, orquestrando, ao minuto, os conteúdos e a forma de os transmitir. Também foi com ele que me iniciei no uso do discurso verbal e não-verbal e no tirar partido do potencial cognitivo e emocional dos aprendentes (estudantes e formandos), desafiando-os a participar no processo de aprendizagem “como tripulantes do navio e não como turistas em cruzeiro” (palavras dele).
Contingências de vária ordem determinaram a dispersão do meu agregado familiar por outros territórios, como a Índia, Angola, Timor, Brasil e, mais tarde, Macau e China. Este facto foi decisivo, no desenvolvimento do meu interesse pelas Ciências Sociais e do meu gosto em trabalhar em contextos multiculturais.
Ao recordar as minhas raízes, não poderia deixar de evocar a Leca (minha mãe) e a Cila (minha cunhada), duas mulheres incontornáveis que me ensinaram com o seu testemunho – cada uma à sua maneira – o valor da inteligência emocional, quer no modo de nos saber olhar ao espelho quer na maneira de nos relacionarmos com os outros.
Formação inicial
Os anos em que decorreu a primeira parte da minha formação universitária foram particularmente importantes para a consolidação do modo de interpretar o meu papel como cidadão. A militância na Juventude Universitária Católica (JUC) e no movimento estudantil obrigou-me a debruçar-me sobre a Doutrina Social da Igreja e sobre o pensamento marxista. Muito marcada pelo Vaticano II, a JUC do meu tempo foi sem dúvida um viveiro de cidadania.
A entrada para a Universidade, naquela época (1968-1974) e naquela escola (o ISCSPU/UTL) foi fascinante, fazendo-me apaixonar “à primeira vista” pelas Ciências Sociais e pela sua utilização como ferramentas ao serviço do desenvolvimento e da democracia. Houve professores me marcaram profundamente, alguns dos quais decerto sem darem conta disso, pois eu, nessa altura, apesar de extrovertido com os colegas era relativamente tímido.
Esse facto tem-me feito pensar na enorme responsabilidade de qualquer professor cuja influência, boa ou má, pode condicionar a vida de muita gente sem se aperceber, dado o facto de constituir um modelo de referência para os seus alunos. Esta exposição é particularmente evidente em provas públicas de avaliação: tenho episodicamente observado pessoas que, por ignorarem este facto, acabam por fazer figuras tristes, ao massacrarem estudantes em público, apenas por simples vaidade ou pelo prazer do (mau) exercício de poder, confundindo exigência (indispensável) com arbitrariedade (condenável).
Voltando ao percurso académico, penso que o meu modo de encarar o papel de professor foi bastante influenciado, nessa época pelo exemplo de quatro professores: Silva Rego, por exemplo, ensinou-me a valorizar um exame inteligente e justo; João Pereira Neto ensinou-me a estimular nos alunos um pensamento divergente e crítico; Maria Beatriz Rocha Trindade mostrou-me a importância do ensino prático, guiando-me os primeiros passos como entrevistador, pela observação do seu desempenho e pela experimentação sob sua tutela; Nas lições de Adriano (Moreira), observei a beleza das aulas bem preparadas, a força de um pensamento poderoso, aliada à invulgar capacidade de comunicação e ao modo respeitoso como tratava os estudantes.
A opção pela docência
A minha aproximação progressiva do ensino foi quase inconsciente. Nos quatro anos de trabalho em barracas tive a 1.ª experiência como professor de adultos. No período revolucionário, aprendi com Lourdes Pintasilgo e Teresa Santa Clara Gomes, de quem fui colaborador, a aplicar o pensamento de Paulo Freire a contextos extraescolares. Nos sete anos seguintes, na educação especial, aprendi a importância de assumir que cada aprendente é um ser ‘inclonável’. Nos serviços da Segurança Social (até 1989), mantive a chama educativa acesa, através da minha atividade constante como formador.
A minha entrada para o ensino superior foi mais uma vez fruto de um acaso feliz: em 1980, na Universidade Nova de Lisboa, foi necessário substituir um professor que estava de sabática e por esse motivo, iniciei as minhas lides académicas, nesse ano, como assistente Maria Beatriz Rocha-Trindade em Teoria e Métodos das Ciências Sociais aos caloiros de três novos cursos. Com ela aprendi a planear as aulas e lecioná-las em equipa, ensinamentos que procurei, anos mais tarde, replicar com as minhas assistentes. Guardo recordações ótimas desse grupo de estudantes, alguns dos quais são hoje figuras mediáticas, conhecidas pelo seu talento profissional ou cívico.
Três anos mais tarde (1983), fui convidado para ser assistente na minha velha escola, o ISCSP. Foi assim que iniciei o trabalho docente que já vai com 31 anos, primeiro duas noites por semana, e a partir de 1999 a tempo inteiro.
As últimas três décadas como professor passaram a correr, marcadas por diversas mudanças, a principal das quais foi a entrada para a Universidade Aberta onde, com o Reitor-fundador Armando Rocha Trindade e com Maria Emília Ricardo Marques, aprendi a valorizar o ensino a distância como um excelente instrumento de democratização do ensino, muitas vezes, contribuindo para a melhoria da qualidade do ensino presencial.
Desde essa altura que leciono nos dois sistemas tendo a convicção que cada um tem beneficiado com a experiência que trago do outro. Um exemplo apenas: o ensino a distância ensinou-me que quando faço um manual demoro sensivelmente o dobro do tempo que levaria com um simples ensaio. A razão é clara: quando escrevo um ensaio faço-o para os meus pares, que têm um código comunicacional semelhante ao meu. Quando escrevo um manual, o desafio é chegar aos neurónios de um grupo muito mais heterogéneo, em termos cognitivos, emocionais e logísticos de aprendizagem. Isto implica que quando escrevo um manual tenho não só de obedecer ao protocolo científico, mas também de desenhar estratégias de comunicação educacional adequadas, muitas vezes propositadamente redundantes.
A partir daí o tempo acelerou e tudo parece ter acontecido ontem, tal a rapidez e a densidade com que ocorreu.
Em jeito de balanço: muros e pontes
Já procurei ensinar muita gente, quer em sala de aula (ou a distância, online ou não), quer em situação de supervisão. Uma coisa é certa: tenho-me divertido imenso (acredito que trabalho sem diversão é masoquismo).
A gratidão, é claramente o sentimento que me domina quando olho para estes anos: em primeiro lugar para os que me ensinaram a ser professor através do seu exemplo como pessoas e como cidadãos. Depois aos meus alunos com os quais sempre mantive uma relação de camaradagem exigente, procurando que fossem pessoas autónomas, solidárias, que soubessem lidar com a diversidade e que aprendessem a viver a democracia no quotidiano.
Se me perguntassem como gostaria de ser lembrado, penso que seria como um professor exigente e amigo, que sempre gostou mais de pontes que de muros. Oxalá que este desejo se realize.