A Maldoror acaba de publicar uma nova edição do clássico Nossa Senhora das Flores, de Jean Genet. Em mais um contributo desse diamante que é Aníbal Fernandes, o regresso ao livro tremendo de Genet permitiu-me apreciar sobretudo a poética, mais do que espantar diante da crueza dos assassinos que fascinavam o francês.
Foi no tempo da faculdade que li pela primeira vez este livro e lembro do espanto perante o claro fascínio pela decadência. Uma avidez pelas figuras cuja moral não se redimia de modo algum, porque o homicídio era por toda a parte e sem remorso. Os amores de Genet, Mignon ou de Nossa Senhora das Flores eram todos parte de um quotidiano onde a ferocidade estava latente, como entre animais que, por um instante sem muita explicação, sucumbissem a uma natureza violenta que terminava tudo. Os amores de Genet eram, por isso, feitos de uma sujidade que feria quem lia, mais ainda porque narrados também com uma poética aqui e ali deslumbrante. Genet, poeta, deita sobre o feio daquelas vidas imagens deslumbrantes, palavras perfeitas que cintilam como luzes limpas na infinita escuridão.
Reler Genet agora é sobretudo catar essa cintilação. Já desenganado do triste que são os amores, mormente estes amores entre assassinos e prostitutos, o que hoje o texto do grande autor me traz é seu ritmo imparável e a beleza da expressão que acontece igual a modo de corromper a imoralidade. O belo parece ser o que num prato da balança compensa no outro a decadência inteira.
Recentemente, li um romance de um autor brasileiro que já se viu premiado e com várias tiragens esgotadas. Outono de Carne Estranha, de Airton Souza, é uma ficção acerca dos amores dos homens que garimpam ouro na Serra Pelada, arriscando a vida por um sonho de fortuna, desde logo descendo e subindo as tremendas escadas de onde tantos caem e morrem, por isso mesmo chamadas de “adeus-mamãe”. Afastados por meses ou anos de suas famílias, miseráveis as mais das vezes, procuram nas prostitutas a presença do amor e fervem numa saudade que se torna complexa, tormentosa, quase desumana.
Airton Souza é exímio no relato. Frontal, até gráfico em algumas passagens, sobretudo logo nos primeiros parágrafos, o autor usa da mesma secura que Genet é capaz, mas traz uma sensualidade que só o calor inventa. Ainda assim, o trunfo de Souza está também na potência poética. Aqui e ali, sem demasiada explicação, as emoções são abeiradas por expressões impossíveis de definir. Momentos de certa suspensão de sentido onde o que importa é a criação de uma imagem de espanto que, invariavelmente, aprofunda mais a carência e o desamparo, que é o mesmo que dizer, complica o amor e seu exercício.
O livro respira desse modo. Narra o que pretende que saibamos mas pulsa segundo o aparecimento dessa pérola poética que nos diz sobretudo que o fundamental escapa a todos os conceitos. O ritmo de tudo quanto se conta fica ferido dessa beleza mas também do incerto que carrega, como se fosse anúncio de miragem, de promessa impossível, lugar imaginário a que ninguém vai ser capaz de chegar. Esse lugar, que é substancialmente o amor, pode ser apenas o desejo de regressar a casa. Coisa que não se garante. Pertence ao sonho. Ali, todos, por mais brutos, feridos ou ferozes, se movem pelo sonho. São assombrados pelo sonho.
O livro de Airton Souza, que infelizmente ainda não está editado em Portugal (Companhia das Letras no Brasil), é tristíssimo e lindo, profundamente lindo, ainda que todo feito da lama do garimpo, ainda que todo feito de fome e saudade, da pertura da morte e da violência. Julgo que não havia lido sobre amores tão ásperos desde que lera Genet na juventude. Do mesmo jeito, por um tempo, dá até medo.