Mais tarde atribuíram o caso à aquisição de um novo gadget, em promoção numa loja online. Aparentemente, aquele gadget não servia para quase nada, mas tinha um ascendente natural sobre todos os outros.
Nunca se devia ter levantado. Logo de manhã, a escova de dentes elétrica, de forma descontrolada, tentara enfiar-se-lhe pela garganta adentro para o sufocar. Começou por tossir, mas o esforço era inglório, pois a escova metia-se cada vez mais fundo, provocando o vómito. Puxou-a com as duas mãos, atordoado, defendendo-se como podia, enquanto esta teimava em entrar e sair da sua boca. Num gesto de agilidade, com um movimento rápido, conseguiu trancá-la dentro da sanita. Não chegou a puxar o autoclismo, pois, mal se livrara do adversário, a máquina de barbear colocou-se em ação, arrancando-lhe logo um tufo de cabelo e meia sobrancelha. Enquanto isso, o aquecimento elétrico, não satisfeito com o encastre a que estava sujeito, aquecera o ar a um nível próximo do desmaio. Num gesto de autodefesa abriu a janela, para baixar a.temperatura e quando a máquina de barbear se preparava para uma nova investida, ele protegeu-se, acertando-lhe em cheio com o piaçaba, que nem craque de beisebol, e projetou-o para fora da janela.
Quase refeito, mirando as mazelas ao espelho, fez por pedir ajuda ou relatar o sucedido. Mas quando pegou no telemóvel este recusou-se a ligar qualquer número de emergência. Em vez disso, passou a emitir um som tão agudo quanto alto, que quase lhe furava os tímpanos. Tapou as orelhas e, espavorido e seminu, saiu porta fora. Mal entrou no corredor, o aspirador, que se havia colocado estrategicamente à espreita, pregou-lhe uma rasteira daquelas e deixou-o estatelado no chão. A custo tentou levantar-se, enquanto o malvado aparelho indecentemente tentava sugar-lhe as partes baixas. Felizmente, o esforço do aspirador, na velocidade máxima, esgotara-lhe a bateria.
Levantou-se, coxeando, enquanto as luzes faziam um espetáculo epilético, rádio, televisão e aparelhagem ligavam-se em simultâneo numa barulheira aterradora. Refugiou-se na cozinha. Mal sabia ele que o plano era mesmo encurralá-lo ali. A faca elétrica e a trituradora preparavam-se para atacá-lo, enquanto a torradeira arremessava impiedosamente migalhas incandescentes. Molhou a esfregona no balde e começou num jogo de esgrima e salpicos, sabendo quanto os pequenos eletrodomésticos temem a água. Ao fim de 20 minutos de luta renhida, renderam-se, voltando ao modo pause.
Ele estava ferido e cansado, mas ainda assim teve força para desligar o quadro elétrico. Foi então que ouviu vozes do lado de lá da porta. Algum vizinho se apercebera da aflição e chamara reforços. A custo, espreitou pelo óculo. Viu dois polícias. Guardavam no coldre pistolas automáticas.