Continuo à espera de ver o coletivo Criatura levantado à condição de herói nacional. Só não tira da cabeça que os Criatura são a mais importante banda do país neste instante quem não os conhece. Por bizarra coisa da sorte ou do azar, muita gente segue de cabeça na areia, anos passando, sem descobrir a revolução que se dá, a revolução que regressa e se repensa.
Tenho escrito que a música portuguesa hoje passa por um instante brilhante, diversa e imparável, atende com bastante brio cada estilo, cada sensibilidade. Até o contingente dos românticos que gemem, os moços ligeiros e as moças a fazer de gatinhas, me parece bem conseguido. Contudo, aquilo que os Criatura trazem é de uma completude incomparável. E é a completude que nos deve comover, por ser aquela que deita mão dos radicais da portugalidade e os leva de novo ao esplendor.
Uma banda assim acontece muito esporadicamente. Uma que consiga genuinidade em cima do génio, a energia certa, o propósito certo, as composições, as letras, as vozes, os músicos maduros, o momento exato, oportuno, para revelarem a sua luta. O momento em que “nem a palavra chega podemos dizer com dignidade”.
Quem assiste a um concerto dos Criatura, mesmo sem nunca ter sabido deles, sem nunca lhes ter ouvido uma nota, vê a luz. Subitamente, é o país da Democracia no palco, o país com que todos sonhamos, pelo qual tivemos ilusão e que parece escapar-se na mesma horrenda vilania que ensombra outros países, dentro e fora da Europa. Os Criatura parecem o regresso das arruadas convictas e certas, o regresso das manifestações onde todos vimos os direitos fundamentais reconhecidos, eles parecem bandeiras e família, uma aldeia vibrante que pulsa no coração até da mais adormecida cidade.
A importância que lhes atribuo tem que ver com esta bravura de cumprirem um papel que é bastante maior do que cada um dos seus elementos. Um de juntarem na música a força que foi necessária para o essencial da luta portuguesa. Para a luta recente, aquela que nos importa, a que nos representa e deve representar enquanto povo, uma luta democrática, livre, inclusiva, esperançada, trabalhadora, com memória. Decente.
Por vezes, em ciclos, alguém pressente ser urgente o regresso do protesto aliado à festa, o engenho de cantar nossas vulnerabilidades de coletivo, de governantes e governados. Alguém pressente como vão desprezados os mais sinceros ensinamentos do cancioneiro português e os recupera, refazendo tudo numa novidade que traz dentro de si um monumento antigo. Um tesouro antigo que sempre esteve aí para enriquecer quem quer ser enriquecido.
É uma maravilha que se junte o Alentejo ao som do Minho, da Galiza, do Algarve, a tristeza do fado e a melancolia de Zeca Afonso, a ironia de José Mário Branco ou a complexidade de Fausto. E é uma maravilha que exista a voz do Gil para ser cigana e escura, perigosa e temperamental, e exista a voz do Edgar para ser aguda, melódica e educada, solar, tão cândida quanto, por vezes, tristíssima. Juntos, são terra e luz, noite e dia de uma inteireza rara e imperdível.
Estou há uns anos a espantar para o facto de não saltarem para a evidência nacional. Folgo, contudo, em verificar, que quem cai num concerto dos Criatura não volta igual. Vão as pessoas embora num espanto inaugural. Uma coisa que me parece igual a começar o país de novo. Assim aconteceu novamente quando vieram tocar a Vila do Conde (haja milagre nesta terra tão cansada de cantores ligeiros e vozes de gatinhas) e vai acontecer obrigatoriamente quando, já a seguir, tocarem em Serralves. Se para os lados de Lisboa os atentos são incapazes de perder rasto à Criatura, aqui para mais longe mais se demora a tomar conhecimento.
Mas também se torna impressionante ver como uma banda se impõe na escuridão, concerto a concerto, pelo seu trabalho, sem que a grande montra dos média lhes preste atenção. O que os Criatura conseguirem, tudo quanto conseguirem, podem bem atribuí-lo ao seu trabalho. À força magnífica do seu trabalho. Sem mais favor do que o de um ou outro careca que jamais parará de alardear que eles andam aí. É vê-los para nunca mais poder deixar de os ver.