Conheceram-se na escola de cinema, há mais de 30 anos, e têm vindo a trabalhar juntos. Hugo Vieira da Silva, que reside em Viena há décadas, tornou-se um nome destacado da realização em Portugal, com os prémios obtidos para filmes como Body Rice (2006), Swans (2011) e Posto Avançado do progresso (2015). Paulo MilHomens é um destacado montador, habituado a trabalhar com Sérgio Tréfaut e Fonseca e Costa, entre outros.
A meio deste projeto, Hugo Vieira da Silva adoeceu e viu-se impossibilitado de viajar para o Taiti. Entregou então a realização em campo a MilHomens. Diga-se que, anteriormente, MilHomens já tinha tido uma experiência de realização, quando terminou Axilas, adaptação de Rubem Fonseca, que Fonseca e Costa deixara inacabada.
Tal como Alex, em Os Amigos de Alex, ou Godot, em À Espera de Godot, Longe da Estrada tem uma personagem central fisicamente ausente, que é o próprio Gauguin, sendo que Victor Segalen, interpretado pelo francês Antoine de Foucault, serve-nos de guia pelo mapa não figurativo do mítico pintor.
Regressas à temática colonial de Posto Avançado de Progresso, mas num contexto completamente distinto, num filme totalmente falado em francês e filmado no Taiti. Como chegaste aqui?
Hugo Vieira da Silva: Quando estava a terminar o Posto Avançado, passou-me pelas mãos uma BD do Victor Segalen e interessou-me desde logo. A época é quase a mesma, o quadrante completamente diferente, mas foca-se também nas questões coloniais. E havia sobretudo a questão da arte. Interessou-me muito pensar a arte em contexto colonial.
Porquê?
HVS: Eu comecei por fazer documentários sobre artistas. E já nessa altura andava muito à volta da questão de como filmar a pintura, como fazer um filme sobre pintura. Portanto, quando me apareceu esta BD foi de encontro a isso e também ao colonialismo, que é um assunto que tenho abordado nos meus filmes, pois acho que é um tema constitutivo para Portugal.
Além do Gauguin o filme mostra-nos Segalen…
HVS: A BD levou-me a introduzir a personagem do Vítor Segalen e a ler os seus livros. Ele consegue colocar-se do lado de fora e analisar a questão da interculturalidade, pondo o exotismo em causa. Houve depois a ideia de extirpar o Gauguin do filme.

O Gauguin é uma espécie de Godot ou de Alex, de Os amigos de Alex. Apesar de não aparecer no filme está sempre lá…
Paulo MilHomens: É um fantasma, de que todos falam, que todos querem perceber. Essa é a riqueza do guião do Hugo e da Cláudia. Cada personagem que o Vítor encontra constrói o seu próprio Gauguin, mas não é um patchwork, porque depois não há uma chave mágica, não há uma solução para isto, Mantém-se sempre o enigma. Há os pincéis, a blusa com que ele pintava, os quadros que são tratados de uma maneira muito prosaica, como objetos amontoados que ele tem permissão de recuperar, o atelier, os amigos, o sítio onde ele bebia copos, a montanha onde ele ia. São tudo vestígios de um fantasma.
Falar do Gauguin sem ter o Gauguin é também falar da pintura sem ter a pintura excessivamente figurada, e criar assim um território onde a imaginação do espectador pode produzi-la
Hugo Vieira da Silva
HVS: Falar do Gauguin sem ter o Gauguin é também falar da pintura sem ter a pintura excessivamente figurada, e criar assim um território onde a imaginação do espectador pode produzi-la. Ele acaba por ter um corpo, um sudário, existe enquanto negativo (no sentido fotográfico). O Segalen faz esse papel. É o seu próprio corpo que integra esta experiência do Gauguin É isto que dá origem também à sua própria poesia.
PMH: Ele já tem esta força e energia quando chega ao que se chama agora a Polinésia Francesa, mas é esta tentativa de aproximação a este fantasma e ele vai fazer isso até pelo seu trabalho de arqueologia, etc. Está presente apenas como um fragmento, uma memória, um registo vago a reconstruir-se. Mas também é um momento de afirmação pessoal do Segalen enquanto artista. Segalen é um escritor formidável da língua francesa, que merecia ser melhor conhecido em Portugal.
No início o Gauguin parece ser não um bom selvagem, mas algo como um bom colono… depois acabamos por perceber que não será bem assim…
PMH: Tem muitas facetas. Agora tenta-se encaixá-lo numa espécie de grelha moral, que tem a ver com estas polémicas que há à volta da figura.
HVS: É uma personagem paradoxal, nas suas múltiplas expressões e também com uma energia provavelmente muito intensa. Mas que é uma personagem que reflete sobre a sua própria condição e sobre a questão do Taiti. Ele tem uma visão muito ácida, escreve coisas dececionadas ou criticamente agudas sobre a questão colonial e sobre o facto de transportar uma ideia de go wild. Portanto, é o europeu quer ir para a pureza e para a natureza intocada, mas que se desilude. No fim descreve uma sociedade haitiana tomada pela francofonia, que tomou o lugar da língua local
PMH: Convém lembrar a latitiude da biografia do Gauguin. Tornou-se pintor muito tarde, aos 32 ou 33 anos, depois de ser corretor na Bolsa em Paris, a sua infância é passada no Peru, trabalhou na construção do canal do Panamá, casou com uma dinamarquesa… Fez uma enorme quantidade de viagens.
Passando para a questão da dupla realização. Como é que se trabalha a dois e ainda por cima com uma distância enorme?
HVS: Quando percebi que, por motivos de saúde, não poderia viajar até ao Taiti, pensamos em cancelar o filme, ou adiar para outra altura. Depois pareceu-me que, dado o estado avançado das coisas, a melhor solução era fazer o filme com o Paulo. Há 20 anos que trabalhamos juntos e há uma enorme confiança entre nós. Portanto, convidei-o para entrar no projeto. Tentei criar um processo de imersão aqui em Viena, uma espécie de workshop preparatório do filme, que envolveu várias pessoas, incluindo o ator principal. Criámos um entendimento entre nós todos do ponto de vista artístico, daquilo que queríamos para o filme.
E depois na prática, durante a rodagem?
HVS: Já em outros filmes tive a sensação de que posso deixar tudo em piloto automático e as coisas funcionam. Mas o Paulo teve que tomar decisões e fazer as coisas que eu não pude fazer, embora tivessem sido discutidas entre nós.
PMH: Muitas vezes esquecemo-nos de que o cinema é um trabalho colaborativo. Os filmes fazem-se com a intervenção de muitas pessoas, na rodagem, na pós-produção, na preparação, etc. Nós fomos conversando. A única maneira de se criar desta maneira é conversando. Durante a rodagem era difícil, por causa do fuso horário… Havia uma certa décalage, porque o Hugo via o material do dia anterior e eu se calhar já estava chateado com coisas que tinham acontecido naquele dia. Depois, o facto de termos trabalhado com o ator foi importante. Ele está em todas as cenas e é ele que nos conduz pelo filme. Essa âncora permite depois construir o resto. E teve que se construir lá, porque quase todos os atores, são do Taiti.
Foi muito difícil filmar no Taiti?
PMH: Foram dias longos e muito duros. Filmamos em três ilhas e as distâncias são muito grandes. O Taiti tem apenas uma estrada circular, com engarrafamentos monstruosos. E filmámos em muitos décors, em sítios diferentes. Lembro-me que um dos décors que estava planeado já não existia, tinha sido levado pelo mar. Aconteceu um bocado de tudo, passando pela imprevisibilidade do clima, porque tanto faz um sol radiante como de repente começa a chover.

E como é que definiram para captar, de alguma forma, através dos décors, da fotografia, também através daí, algo da pintura do Gauguin?
Segalen é um escritor formidável da língua francesa, que merecia ser melhor conhecido em Portugal
Paulo MilHomens
HVS: Quisemos fugir a isso. Começámos por recusar os formatos longos que poderiam cair exatamente numa visão mais exótica do Taiti ou numa vontade de filmar e de mostrar em amplitude o esplendor da paisagem. Por isso filmámos em 1.33, que permite jogar com o fora de campo, com a imaginação, justamente com essa pintura que não se vê. Em termos fotográficos a ideia também foi fugir a cores excessivamente saturadas. É claro que em termos de mise-en-scène temos algumas situações que tentam figurar três ou quatro quadros do Gauguin, mas com uma aproximação que evitasse o exotismo. O próprio Gauguin tem uma pintura que é tudo menos exótica. Se compararmos com os autores que nós chamamos exóticos da época, é uma pedrada no charco, porque reduz a palete, introduz elementos inesperados, é uma outra poética.
PMH: Ele está a refletir sobre coisas fundamentais, o contorno, o uso da cor, do símbolo. Especulando, ele se calhar na Bretanha poderia produzir aquela pintura. Na cabeça tinha mais os Irmãos Lumière, do que propriamente o Gauguin.
Já alguma vez se tinham imaginado a fazer um filme francês?
HVS: Não, em absoluto. Eu falo português, depois basicamente sei alemão e inglês. O francês é a minha quarta língua. Mas houve a questão da banda desenhada, com pontos que são absolutamente universais e o próprio Gauguin faz parte do imaginário mundial. Convidei uma colega franco-italiana, Cláudia Bottini, para trabalhar na escrita. Foi importante trabalhar com uma pessoa que dominasse a língua francesa. .
PMH: Eu sou fluente em francês, já montei filmes quase totalmente falados em francês, para mim não foi nenhuma questão. Mas há uma questão de linguagem importante: o filme é em francês e marquesino. As línguas Maui foram proibidas de serem ensinadas na Polinésia durante bastante tempo e agora há a recuperação dessa identidade
Então agora o próximo filme vais filmar para a Antártida?
HVS: Tenho um projeto já está escrito, estou-lhe a dar uns últimos retoques, mas anda em fase de financiamento. Também tem a ver com um espaço extra-europeu, mas não vou dizer mais.
E tu, Paulo, para quando uma longa realizada apenas por ti?
PMH: Eu gosto muito de trabalhar em equipa e a montagem tem sido algo muito rico, porque me confronto com pessoas, opiniões e ideias Mas, sim, é possível que no futuro tenha um projeto só meu.