O DocLisboa tem uma nova diretora. O que por si só não é uma notícia muito surpreendente, já que ao contrário de outros festivais que mantém uma estabilidade nas suas direções, o Doc, organizado pela Apordoc, tem optado por alguma rotatividade na sua direção.
O que realmente surpreende é a opção por escolher uma diretora de um país distante. A mexicana Paula Astorga sucede a Miguel Ribeiro, que dirigia o Doc desde 2020 e agora passa para a coordenação do Lugar Comum, em Lisboa.
A escolha de uma diretora estrangeira, que não reside em Portugal e que tinha apenas uma relação esporádica com o festival, acompanha a tendência de alguns outros festivais internacionais. Pense-se, por exemplo, que Cíntia Gil, elemento da direção da Apordoc que dirigiu o DocLisboa por alguns anos, teve a experiência da direção artística do prestigiado festival de Sheffield, em Inglaterra.
De resto, diga-se que o currículo de Paula Astorga fala por si: fundou dois festivais no México, foi diretora da Cinemateca Mexicana, entre outras atividades. Encontra-se no seu discurso um pensamento sobre cinema e tem como especialidade a mediação de audiências. Pelo que se há algo que se pode esperar da nova direção, que ainda não sabemos se terá continuidade no próximo ano, é uma maior aproximação do público.
Paula Astorga só iniciou as suas funções em fevereiro, pelo que não terá tido a oportunidade de deixar de pôr o festival a seu gosto. Naturalmente, o que se encontra no festival deste ano é sobretudo uma continuidade, mantendo-se as principais secções, assim como uma filosofia geral: o Doc é um festival que observa o mundo, com uma forte componente política e social, que traz para reflexão grandes temas da contemporaneidade.
Além disso, desde o seu início, o festival tem uma amplitude abrangente, incluindo, além dos documentários clássicos, objetos híbridos e as chamadas ficções do real. Não é expectável ver no DocLisboa um thriller ou uma comédia romântica, mas a verdade é que há uma amplitude de critérios suficiente para que isso possa excecionalmente acontecer. Não é assim de estranhar que o filme de encerramento O Dia que te conheci, de André Novais Oliveira, seja uma ficção com uma respiração documental.
Uma das opções de Paula Astroga foi reduzir ligeiramente a programação, com o objetivo de haver mais filmes com duas sessões. É um sinal de maturidade de um festival consolidado, que já não ambiciona crescer sem limites, mas manter uma dimensão suficiente para ser abrangido por um público cinéfilo. A diferença de número de filmes programados não é significativa, mas não deixa de ser reveladora de uma tendência e de um conceito.
Paul Leduc e o 25 de Abril de Lucia Fina
A marca mais visível da presença da nova diretora é a escolha do realizador homenageado. A Cinemateca vai fazer uma retrospetiva quase integral do mexicano, que faleceu em 2022. Paul Leduc é uma das grandes figuras do cinema latino-americano, sendo que a sua obra preenche os habituais parâmetros sócio-políticos e estéticos dos realizadores em destaque do DocLisboa.
Paul Leduc é um nome maior do cinema da América Latina que vai ser homenageado pelo DocLisboa com uma retrospetiva quase integral
Há todas essa abrangência de géneros, bem como um testemunho e questionamento da contemporaneidade em espelho com o passado. O seu filme mais conhecido é Frida, Still Life, uma ficção em que retrata de forma impressionista a grande pintora mexicana. Mas dentro do seu trabalho encontramos um pouco de tudo, incluindo Reed, México Insurgente, que faz uma ponte para o 25 de Abril.
Inclui também, entre outros, O Cobrador, a única longa realizada no século XXI, que parte de contos de Rubem Fonseca, ou Histórias Proibidas do Purgatório, sobre a guerra civil em El Salvador, a partir do poeta assassinado Roque Dalton.
O Doc começa da melhor forma com Sempre, de Lucia Fina. A artista visual e realizadora italiana, residente em Portugal há mais de 30 anos, fez um trabalho notável através dos arquivos da Cinemateca, num cruzamento de espaços temporais, entre imagem e som, que não só ilustram o 25 de Abril de 1974, como convidam a uma reflexão sobre o país contemporâneo e as novas formas de luta. O filme chega ao Doc depois de ter passado pelo festival de Veneza.
Competições
A Competição Nacional é, naturalmente, um dos epicentros do festival. Mostra-se uma diversidade de propostas e até de… nacionalidades, sinal de uma certa hibridez dos tempos que correm, em que por vezes se torna difícil, e se calhar não muito relevante, olhar para os filmes através da sua nacionalidade. Aliás, uma boa fatia dos filmes em competição é feita de coproduções.
Entre curtas e longas, muito se pode destravar na competição portuguesa. André Gil Mata faz um retrato íntimo, poético e familiar em Sob a Chama da Candeia. Filipa César retoma a temática da luta anticolonial em Espiral em Ressonância, filme correalizador com Marinho e Pina.
Marta Mateus apresenta Fogo de Vento, uma longa em formato híbrido. Rui Pires propõe-nos uma viagem ao interior da assembleia da república, revelando alguns dos seus meandros, em O Palácio dos Cidadãos. Zsofia Paczolay e Dorian Rivière, em Estou Aqui, mostram o pavilhão desportivo do Casal Vistoso, em Lisboa, convertido em centro de abrigo, durante a pandemia. Ou Trafaria, em que Pedro Florêncio faz um mapeamento dsaquela vila ao Sul do Tejo.
Alguns dos filmes apresentados também concorrem na competição internacional que, como é habitual, reflete uma variedade temática e geográfica. São 12 filmes, que incluem cinco estreias mundiais. Entre outros, Les Loups, de Isabelle Prim, sobre um palácio do séc. XVII transformado em asilo psiquiátrico.
Houbla, do argelino Lamine Ammar-Khodja, sobre uma pintora em perseguição de uma sombra. L’Ancre, de Jean Debauche, em que Charlotte Rampling é uma psicoterapeuta que escuta os depoimentos dos seus pacientes. Ou Well Oredered Nature, da alemã Eva C. Heldmann, a partir dos textos da artista e cientista amadora do séc. XVIII, Catharina Helena Dõrrien.
De Lula da Silva à guerra da Ucrânia
Da Terra à Lua é definido, pela própria organização, como “de um cinema que observa, questiona, procura articular temporalidades e narrativas aparentemente deslaçadas, permitindo-nos encontrarmo-nos com a nossa amplitude humana”. A verdade é que, entre a amplitude de escolhas, naquela que é uma das secções mais extensas, encontram-se filmes de alguns dos mais mediáticos nomes.
É até mesmo o caso de Oliver Stone que, juntamente com Robert Wilson, filma uma conversa com Lula da Silva, atual Presidente do Brasil. Por seu lado, em Henry Fonda for President, Alexander Horwath faz um retrato da América através da vida do ator que se tornou o rosto de filmes de John Ford, entre outros. Sergei Loznitsa, provavelmente o mais relevante realizador ucraniano da atualidade, documenta a luta do País, em Invasion.
De resto, um tema muito próximo do que faz Abel Ferrara, em Turn In the Wound, com a música e poesia de Patti Smith que está na secção Heart Beat.
Em Exergue – on documenta 14, o realizador grego Dimitris Athiridis, num filme de 14 horas, acompanha o trabalho do diretor artístico Adam Szymczyk e a sua equipa de curadores.
A secção também tem dois filmes portugueses que merecem o maior destaque. A começar por Koira, de Cláudia Varejão, que se estreou em Veneza, um filme que traça o perfil de mulheres refugiadas a viver em Portugal. E também Por ti, Portugal, eu juro!, de Sofia da Palma Rodrigues e Diogo Cardoso, sobre os africanos que combateram do lado português durante a guerra colonial.
Da secção fazem ainda parte um ciclo dedicado ao 40.º aniversário da Constituição Espanhola, com curadoria da Cinemateca de Madrid, feito de obras caseiras restauradas. E passam diversos filmes antigos, como são os casos de Here and Elsewhere, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville; ou The Palestinians, de Johan van der Keuken.
De Augusto M. Seabra à Palestina
A edição deste ano do DocLisboa é dedicada a Augusto M. Seabra. Uma homenagem natural que reconhece uma das figuras centrais do festival, que inspirou gerações de programadores e cinéfilos. M. Seabra foi responsável pela criação da secção Riscos, que continuou para além dele, mas sempre mantendo o mesmo espírito, procurando filmes desafiantes, muitas vezes também na sua forma. Assim é nesta secção que se inclui a sessão especial de homenagem, exibindo um dos primeiros filmes programados por si para o DocLisboa, Compilation, 12 instants d’amour non partagé.
Uma das obras mais impressionantes é Some Strings, uma obra poética quase infinita mas de alcance pragmático. O poeta e professor Refaat Alareer e sete membros da família foram atingidos por ataques israelitas. No seu último poema, Se tenho de morrer, publicado cinco semanas antes de ser assassinado, Alareer apela aos que deveriam viver para criar um papagaio de papel – um objecto de resistência de longa data – com pedaços de fio. Lançado em março de 2024, Some Strings juntou, até ao momento, mais de 100 artistas e seis horas de curtas-metragens.
Nesta secção deparamo-nos com filmes muito surpreendentes, como é o caso de Eight Postcards From Utopia, em que Radu Jude e Christian Ferencz-Flatz fazem um retrato ou quase uma história recente da Roménia, apenas através da publicidade – uma publicidade em que se reconhece todo o humor dos romenos.
O desconcertante Harmony Korine apresenta Aggro Dr1ft, uma espécie de thriller, inteiramente rodado em lente térmica. Em TWST – Things We Said Today, Andrei Ujică faz um retrato da América a partir da beatlemania. Em Small Hours of the Night, Daniel Hui olha para a Singapura recém-independente dos anos 60. Demmin Cantos, o primeiro filme de Hans-Jürgen Syberberg em quase 30 anos, revela um olhar sobre uma aldeia próxima da cidade onde cresceu.
O Riscos divide-se em subseções e tem como realizador em destaque Pierre Creton, realizador francês que tem como peculiaridade o facto de também se dedicar à agricultura.
De Ruy Cinatti a Bruce Springsteen
Uma da secções mais populares do DocLisboa é o HeartBeat, em que se faz a ligação entre o cinema e a música, mas também com outras artes. É nesse contexto que surge, por exemplo O Voo do Crocodilo – O Timor de Ruy Cinatti, o magnífico retrato do poeta e antropólogo por Fernando Vendrell.
Entre os portugueses, destaque-se também o filme de Diogo Varela e Silva, O Diabo do Entrudo, sobre as tradições populares de terras de Lazarim; e já agora também Ressaca Bailada, do seu filho, Sebastião Varela, sobre a sua própria banda, Expresso Transalântico. Há ainda o retrato de Paulo Catrica do fotógrafo Guido Guido.
No campo da música, há filmes sobre Peaches, Blur, Pavement, Devo, Bruce Springsteen e Luiz Melodia. Para não falar de Before It’s Too Late, o filme do realizador e ator Mathieu Amalric sobre o Quarteto Emerson.
Nas outras artes, destaca-se High & Low, o retrato do estilista John Galliano por Kevin Macdonald. Ou dento do próprio cinema, François Truffaut, My Life, a Screenplay, de David Teboul; Jacques Demy, the Pink and the Black, de Florence Platarets; Looking for Robert [Kramer], de Richard Copans; ou Miyazaki, Spirit of Nature, de Léo Favier.
Jean-Pierre Rehm é o responsável pela retrospetiva Back to the Future, com o intuito de ligar alguns filmes do século XX de índole modernista e transformadora.
Passam filmes desde O Homem da Câmara de Filmar, de Vertov, a A Thousand Suns, de Mati Diop, passando por The Negative Hands, de Marguerite Duras; Vampir-Cuadecuc, de Pere Portabella; Ludwig. Requiem for a Virgin King, de Hans-Jürgen Syberberg; ou O Meu Caso, de Manoel de Oliveira.
O festival é feito ainda de outras secções, como Verdes Anos, com obras de cineastas emergentes, ou o Doc Aliance, além de iniciativas paralelas que incluem debates e, claro está, festas.