À saída da sala, depois de ver Camões (1946), de Leitão de Barros, Salazar terá dito que gostara do filme, mas que o cinema lhe fazia doer os olhos. Este episódio resume, em parte, a relação do Estado Novo com o cinema. E a primeira conclusão é mesma essa: Salazar não gostava de cinema. Não obstante, o ditador compreendeu, desde cedo, vendo o exemplo de regimes semelhantes na Europa, que o cinema poderia ser o mais útil veículo de propaganda. Para isso entregou as rédeas ao seu ministro, António Ferro.
O maior exemplo de cinema propagandístico explícito é A Revolução de Maio (1937), de António Lopes Ribeiro, uma obra monumental, que conta a história de um marinheiro soviético, que se imiscui em Lisboa, com o objetivo de espiar e sabotar, mas que acaba rendido, convertendo-se aos bens morais do regime e da sociedade portuguesa. Este é um exemplo extremo de filme de propaganda. Em geral, a estratégia do Estado Novo não terá sido tão explícita, mas nem por isso menos eficaz.
O Estado Novo estabeleceu uma pequena indústria, com o aparecimento da Tobis. O regime fazia a sua propaganda direta em filmes institucionais e a chamadas atualidades. Mas, paralelamente, defendia-se e consolidava-se através do entretimento, com as imagens em movimento, que então ainda eram um fenómeno recente. A época de ouro da comédia portuguesa revela um cinema controlado, com uma mensagem implícita clara, de proteção do status quo social e político, e subtil edificação do próprio regime. O que vemos em grandes clássicos, como A Canção de Lisboa (1933, Cottinelli Telmo), Aldeia da Roupa Branca (1938, Chianca de Garcia), O Pai Tirano (1941, António Lopes Ribeiro), O Pátio das Cantigas (1942, Francisco Ribeiro) ou O Leão da Estrela (1947, Arthur Duarthe) é a cristalização de um modelo social e de uma ideologia moral e política, que se traduz na ideia “pobretes mas alegretes”,
Sendo o cinema uma arte cara (mais ainda antes do advento do digital), a hipótese de fazer filmes a título pessoal independente era uma quase uma impossibilidade prática. Por isso, a censura no cinema não teve que lidar com o mesmo tipo de questões do que em outras artes e na literatura, pois, logo à partida, os meios de produção eram controlados pelo regime. A censura acabava por ser mais ativa junto dos distribuidores, censurando os filmes estrangeiros, ora cortando cenas, ora interditando obras completas, numa censura que era tanto ideológica quanto moral.
Os filmes portugueses eram duplamente visados: o guião carecia de aprovação prévia pela censura, assim como o objeto final. Desta forma, tornava-se praticamente inviável a possibilidade de fazer um cinema que escapasse a um conceito pré-definido pelo regime. No Estado Novo fazia-se, por norma, um cinema controlado e artisticamente pobre, embora haja objetos extraordinários dento do sistema, como os filmes de Leitão de Barros. Fora disso, poucos conseguiram contornar, timidamente, o cinema de estado, nomes como Manuel Guimarães, António Reis e, claro está, Manoel de Oliveira.
Tudo isto aconteceu até ao início da década de 60, em que apareceu um movimento e jovens realizadores que tinham estudado no estrangeiro, que ficou conhecido como Cinema Novo. O movimento liderado por Paulo Rocha e António Cunha Telles, de que fizeram parte Fernando Lopes, António de Macedo, António-Pedro Vasconcelos, José Fonseca e Costa, Alberto Seixas Santos, arriscou fazer um cinema português inspirado no que viam lá fora, com liberdade criativa e um fundo social, sem que houvesse propriamente uma oposição explícita ao regime. Filmes como Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, Belarmino (1964), de Fernando Lopes, Domingo à Tarde (1965), de Antonio Macedo, ou Cerco (1970), de Cunha Telles de alguma forma antecipam o que seria o cinema livre do pós-25 de Abril. E diga-se que o arrojo moral de Cerco só chegou às salas portuguesa porque a própria censura estaria mais branda no período Marcelista.
O que o 25 de Abril trouxe ao cinema foi, pois, a liberdade criativa e a liberdade de exibição. Hoje até se torna difícil de explicar as imagens do Cinema Império, ao tempo da revolução, com um enorme cartaz de Couraçado de Potemkine (1925), clássico soviético de Eisenstein. Em 1974, era ainda uma novidade em Portugal. Assim como terá feito sucesso O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, com as suas arrojadas cenas de sexo (de resto, depois de Abril também abriram várias salas de cinema pornográfico).
No primeiro 1.º de Maio, António Cunha Telles terá distribuído película a vários realizadores para filmarem as ruas. Assim nasceu As Armas e o Povo, filme coletivo, que conta com os olhares de, entre outros, Acácio de Almeida, José Fonseca e Costa, Eduardo Geada, António Escudeiro, Fernando Lopes, António de Macedo, Glauber Rocha, Alberto Seixas Santos, Artur Semedo, Fernando Matos Silva, Manuel Costa e Silva, e Luís Galvão Teles. Fizeram-se filmes em volta da própria revolução, como o díptico Deus, Pátria, Autoridade (976) e Bom Povo Português (1980), de Rui Simões; ou o documentário Torre Bela (1975), de Thomas Harlan, do melhor se fez sobre a Reforma Agrária.
Mais do que exemplos de filmes, o 25 de Abril permitiu um novo cinema, plural, e com diferentes opções estéticas, formais e narrativas. Antes de 1974, a produção de cinema estava, em grande parte, entregue a António Lopes Ribeiro, o realizador formara, nos anos 40, uma produtora que dominava o aparelho, condicionando as opções, num cinema que, no início dos anos 70, longe do auge das comédias portuguesas, estava em confrangedora decadência.
Depois do 25 de Abril, a figura chave para a transição democrática foi António Cunha Teles. O realizador e produtor determinante do Cinema Novo assumiu cargos importantes que determinaram o cinema português. Enquanto presidente do instituto de cinema, definiu que cada filme deveria ter um produtor, implementando as bases do modelo que ainda hoje vigora. Tiveram que se criar produtores e produtoras. Um dos produtores que surgiu na época, por sugestão de Cunha Telles, foi Paulo Branco, que a altura fazia a programação de um cinema parisiense. Foi o novo sistema e a celebração da liberdade de expressão que permitiu o aparecimento de grandes nomes do cinema português.
O incremento do cinema e a liberação de fundos para a produção audiovisual, seguindo parâmetros que defendem a liberdade criativa, foram importantes conquistas de Abril. Contudo, a produção de cinema em Portugal manteve-se diminuta, com uma média não superior a meia dúzia de longas-metragens nas duas décadas que se seguiram à revolução, e só começou a aumentar significativamente a partir do final da década de 90 e, ainda assim, com algumas oscilações.
Entretanto, a Cinemateca Portuguesa fez um apelo público para recolher filmagens amadoras do 25 de Abril (ver caixa). Dentro desse ciclo também vão ser mostradas obras de jovens realizadores que, ao tempo, eram estudantes da escola de cinema e que pegaram em câmaras e foram filmar as ruas. Entre eles encontram-se nomes como João Botelho, Monique Rutler, Jorge Alves da Silva, Paola Porru e Jorge Loureiro.