Não deixa de ser irónico que o primeiro filme português nomeado para os Oscars se passe na neve. É um sinal dos tempos e da globalização. Mas também é porque no cinema de animação não há limites nem constrangimentos e o que aqui realmente conta é a parábola ecológica: Ice Merchants fala de um mundo que se está a desfazer. Pai e filho vivem isolados no cume de uma montanha, com um engenhoso sistema de ‘comercialização’ de gelo. Com o degelo todo o seu universo desauga. Estericamente a animação é deslumbrante, como se se construísse de uma sucessão de pinturas vivas.
O filme não tem diálogos, tornando-se ainda mais universal. O título é em inglês porque se trata de uma coprodução com o Royal College Art, onde João tirou o mestrado, depois de terminar a licenciatura na ESMAD.
Nascido no Porto, em 1996, González tem formação em piano clássico e tem dividido o seu percurso entre a animação, a ilustração e a música. Os seus filmes de escola Nestor e The Voyager receberam importantes prémios. Mas foi com Ice Merchants que chegou além de tudo o que se poderia imaginar. Em 2022, foi o primeiro filme de animação português a ser premiado em Cannes, na Semana da Crítica. A isto acumulou outros prémios, incluindo o principal do Curtas de Vila do Conde.
Em 2021, João González foi um dos nomes destacados pelo JL no número dedicado a grandes promessas das artes e letras portuguesas. Na altura revelava-nos: “Neste momento encontro-me a realizar e animar um novo filme intitulado Ice Merchants terá uma duração de aproximadamente 14 minutos e estará finalizado ainda este ano. Não tenho nenhum objetivo muito concreto a longo prazo, para além de querer continuar a exprimir as minhas ideias em papel / filmes. Até agora, o formato de curta-metragem (de animação) foi o que me pareceu mais apropriado para exprimir o tipo de ideias que fui tendo, e sinto-me muito feliz em trabalhar desta forma. Se no futuro me surgir uma narrativa que ache que faça sentido ser explorada através de outro formato (longa-metragem) ou meio diferente (imagem real), irei lutar pela sua concretização”.
A nomeação de um filme português para os Oscars é um feito inédito. Anteriormente, por duas vezes houve grandes expectativas para que tal pudesse vir a acontecer. Curiosamente, em ambos os casos tratavam-se de filmes de animação. Primeiro, A Suspeita, de José Miguel Ribeiro; depois Tio Tomás – A contabilidade dos Dias, de Regina Pessoa. É caso para dizer: à terceira foi de vez.